Clarice Lispector

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sábado, 20 de dezembro de 2008

Lançamento e Expô "Tibet no coração do Himalaia"





Convite para o Lançamento do Livro e Exposição
de Fotografias "Tibet no Coração do Himalaia", da
escritora, artista plástica e fotógrafa paulistana
Cláudia Proushan.



Lançamento e Exposição:

Dia
20/12/2008, em São Paulo - SP

Horário
das 11 às 14 horas.

Local
Livraria da Vila - Shopping Cidade Jardim
Avenida Magalhães de Castro, 12.000
Pista Local da Marginal Pinheiros,
entre as pontes Jardim e Morumbi.
(Tel) (11) 3755 5811

=
Brasil, 20 de dezembro de 2008 - sec. XXI

Divulgam esse convite:

Grupos Artforum Mundi Planet & Artforum Brasil XXI
La Maison D'Art - Ana Felix Garjan
=
www.artforumunifuturobrasil.org
.
www.cidadeartesdomundo.com.br
.
www.lamaisondart-anagarjan.com.br

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Homenagem à poetisa Elza Fraga





Nossa homenagem à Poetisa Elza Fraga,
do Rio de Janeiro, que passa a integrar
a Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector


ODE AO UNIVERSO
(Elza Fraga)

Ave
que te quero Terra
florida
sem dores,
sem fome,
sem guerra.

Ave
que te quero Mar
A abraçar
os continentes
levando imponente
a passear
barcaças
nas suas correntes.

Ave
que te quero Ar
puro néctar
incolor a aspirar
e inspirar
pulmão e coração
de um mundo
mais decente.

Ave
que te quero Vida
vivida
para sempre plena
em cada canto
do universo,
armada,
defendida,
blindada
de versos!



TEMPO ESCORRIDO
(Elza Fraga)

O tempo galopa e foge
A vida nem tem sentido
Quando penso que está vindo
O chegar já está partindo.
O dia que vou vivendo
É passado num minuto
O futuro que viria
Invade o dia presente
E o que é
Já era
Quebra a rima
Pula o muro
E se vai, escapa, corre...
Foge vira lembrança


Eta vida que me escapa
E rouba a minha criança
E deixa em seu lugar
Esta mulher de olhar vago
Que nem mesma sei se existe
Perdidamente escondida
---------------------------
Escolhida pra ser triste



TEMPO PERDIDO
(Elza Fraga)

Partiu a menina
Ficou a moleca esquisita
Que nem quer ser mulher
Por medo
Se pudesse
Fincava o pé no caminho
E ficava parada
No meio do nada
Espectadora calada
A espreitar
A esperar
O momento
Certo
De capturar o tempo!



ORAÇÃO PARA ADORMECER
(Elza Fraga)

Todas as noites
antes de dormir
eu peço a Deus:
Senhor me dê sabedoria,
cara sem ruga,
vida sem memória,
livro sem história,
filho sem problema
casa toda limpa
com cheiro de alfazema.

Senhor,
me dê uma varinha de condão
pra consertar o que está
escrito no seu livro
a meu respeito
principalmente aquela parte
onde diz ‘vai doer’.

Senhor, se não puder
por tão grande ser a lista
me dê apenas olho
pra chorar
até secar a alma...
talvez isso baste
traga a calma
após o temporal
e eu adormeça em paz,
dia após dia,
noite após noite,
até o fim dos tempos.

Amém!


VIDA
(Elza Fraga)

Pobre, suja, desonrada,
pelos becos violada
por homens que nem tem rosto.
A dor, o ultraje, o desgosto
se transformam em semente.

Barriga cresce, aparece,
empina, torce, contorce
e espirra mais um ente
pra esta peste de vida...
Chega mais um pra desdita
enquanto o beco anoitece.

Demente canta cantigas
de lembranças esquecidas.
E chora ao tempo que ora
pedindo pra que esteja morto
o seu pobre anjo torto...

Mas os santos, adormecidos,
não ouvem o seu pedido
e então entre detritos
o vagido vira grito
urgência, fome de vida!

Tenta calar com um peito
seco, murcho e inútil veio.
E se consola a bendita
é só mais um nesta lida
com a tarefa maldita
de disputar com os ratos

espaço, teto e comida...


POEMA NOS OLHOS
(Elza Fraga)

Eu tive um poema nos olhos...
Espreitou-me a madrugada inteira.
Se delineou, se enfeitou, me envolveu...
As pressas se rompeu
-torto, não se escreveu!

Eu tive um poema nos olhos...
Absorto, calmo, contemplativo.
Me estreitou
-apertado
como abraço de amigo.
Deitou-se a cama comigo,
comigo adormeceu,
se esparramou, se perdeu,
mas teimoso
ainda assim não se escreveu!

Eu tive um poema nos olhos
que preferiu morar mudo
no fundo dos olhos secos
com pena do mundo!


RUMO AO NADA
(Elza Fraga)

Respiro a escuridão!
Sorvo dela cada gole
trazido pelo vento.

Olho pra frente
e só vejo
o intransponível muro,
parede imensa
feita de escuro.

Não há mais tempo.
Não há mais sorte.
Não há mais nada
nem mesmo morte!

Perdi - à toa -
a chave do futuro!

Não há mais uma condução
um trem, um bonde, um avião
que me transporte
só esta corrente negra
que me arrasta
quando passa
pro nunca mais.

Estaco exangue!

E ainda assim
não há uma só gota
de ódio
no meu sangue.


TERMINAL
(elza Fraga)

A tristeza
hoje,
impertinente,
me fatiou a alma
para sempre


APRESSAMENTO
(Elza Fraga)

Escondo no fio
da navalha
o frio
que a alma cala...
Medo
de desvendar
o segredo
da morte

Ou
Quiçá apressar
a nefanda
tenho fobia
a fila
que não anda


ECONÔMICA
(Elza Fraga)

Sou de palavra pouca
Falo com o olho,
economizo boca.


RELAXA

Para com isso moça
a vida é poça
que se pula
e num segundo

acaba o mundo!

.....................

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Fotos de Clarice Lispector












Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum. É uma lucidez vazia, como explicar? Assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou, por assim dizer, vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo, pois estou infinitamente maior que eu mesma, e não me alcanço. Além do que, que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode se tornar o inferno humano - já me aconteceu antes. Pois sei que - em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade - essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.

Clarice Lispector

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Clarice por Clarice

Pedro Karp Vasquez

Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque Clarice por inteiro só os verdadeiramente íntimos conheceram e, ainda assim, com detalhes ciosamente protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores, ainda que os textos confessionais aqui coligidos possibilitem reveladores vislumbres de sua densa personalidade.

A descoberta do amor
“[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. [...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. [...] Porque o mais surpreendente é que, mesmo depois de saber de tudo, o mistério continuou intacto. Embora eu saiba que de uma planta brota uma flor, continuo surpreendida com os caminhos secretos da natureza. E se continuo até hoje com pudor não é porque ache vergonhoso, é por pudor apenas feminino.
Pois juro que a vida é bonita.”

Temperamento impulsivo

“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”

Lúcida em excesso

“Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.

Ideal de vida

“Um nome para o que eu sou, importa muito pouco. Importa o que eu gostaria de ser.
O que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. Isso desde pequena eu quis. Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha? Em pequena, minha família por brincadeira chamava-me de ‘a protetora dos animais’. Porque bastava acusarem uma pessoa para eu imediatamente defendê-la.
[...] No entanto, o que terminei sendo, e tão cedo? Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima.
É pouco, é muito pouco.”

Escritora, sim; intelectual, não

“Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade.
[...] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?
O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

A síntese perfeita

“Sou tão misteriosa que não me entendo.”

A certeza do divino

“Através de meus graves erros — que um dia eu talvez os possa mencionar sem me vangloriar deles — é que cheguei a poder amar. Até esta glorificação: eu amo o Nada. A consciência de minha permanente queda me leva ao amor do Nada. E desta queda é que começo a fazer minha vida. Com pedras ruins levanto o horror, e com horror eu amo. Não sei o que fazer de mim, já nascida, senão isto: Tu, Deus, que eu amo como quem cai no nada.”

Viver e escrever

“Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.”
“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.
O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”
“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”.

A importância da maternidade

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”

Viver plenamente

“Eu disse a uma amiga:
— A vida sempre superexigiu de mim.
Ela disse:
— Mas lembre-se de que você também superexige da vida.
Sim.”

Um vislumbre do fim

“Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”

Textos extraídos do livro Aprendendo a viver, Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004.

Tempo de Natal 2008

Feliz Natal 2008, Feliz Ano Novo 2009
a todas as poetisas e escritoras do Mundo!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Homenagem à Poetisa Lúcia Gönczy



.



Na Academia de Artes e Poéticas "Clarice Lispector",
nossa homenagem à poetisa Lúcia Gönczy, uma filósofa
da vida, uma poetisa das palavras da alma.




Pro
Funda
Mente
minhas lentes
capturam
tua
imagem

Relutante vens a mim
neste vácuo
contorno metalizado
pós moderno
em olhares surreais

E é como de fora
meus olhos te puxassem
e tuas cores transpusessem
o universo da
paisagem

Quero-te pleno
todo ótica
Quero-te dentro
da utopia e do
desejo
Quero-te rio
límpido
pedra
limo

Quero-te sol
Quero-te lua
Quero-te chuva e
acima de tudo
Quero-te Livre
de todas as maneiras
que a natureza
me conceder


Lúcia Gönczy




Tudo que sinto vem do coração, tudo
numa velocidade como se fosse luz e sai
simplesmente sai pela boca
pelos dedos...
pelas letras...
sinto o que você diz porque sinto o
que você sente
e é quase mais bonito do que ouvir
a sonoridade estupenda do silêncio
intrínseca nas palavras


Lúcia Gönczy




ninguém é totalmente cheio
nem totalmente vazio
cada um é um saquinho
vazio de ar
cheio de projeções
vazio de palavra
cheio de intenções
vazio de som
cheio de silêncios
vazio de promessa
cheio de sonhos
vazio des-vario
cheio de razões
lacunas
frestas
entrelinhas
reticências
tudo cheio
tudo vazio
tudo cheio de vazio




Lúcia Gönczy



motivos não necessitam de motivos
explicações desnecessárias
frente verdades explícitas
escritas no silêncio
gritante
das palavras

noites continuam insones
dias intactos
rotinas solicitam rápidas
mudanças
onde trégua e tempo não existem

e no girar constante redemoinho
a paz perde-se em qualquer beco
escuro
o antes obsoleto torna-se
essencial como ar
de certezas reviradas

nada mais a dizer, nenhum truque nas mangas
todas as cartas foram expostas
se houve blefe, não sei...

- fez parte do jogo



Lúcia Gönczy


nascendo ou morrendo
ele existe
este céu de algodão e fogo
incendiando o horizonte
que é nosso




Lúcia Gönczy


Sístole


por onde ver o sol
se aparei arestas
lacrei as frestas
deixei de viver...

por onde ser lua
lutar por este amor
itinerário como
toda viagem
que prossegue
sem saber
pra onde nem
se vai voltar...

que conversa é essa
pra boi dormir
quando tenho um músculo
involuntariamente
pulsando louco
dentro de mim?

(...)


Lúcia Gönczy




se não te procuro mais
é porque respeito o muro que voce ergueu entre nós
muitas vezes tenho vontade de pular esse muro;
pagar pra ver o que encontro do outro lado...
mas não me atrevo; sinto-me persona non grata
então recuo simplesmente como quem ainda não perdeu tudo
e permaneço com restos de uma certa dignidade
assim sobrevivo por instinto;
e o que não faço é por medo


Lúcia Gönczy


desde o cinza vejo teu semblante nas notícias
minha música toca agora
estou fora de mim e de ti
somente os olhares das gaivotas
quem sabe o que acontece nos mangues
e seus pequeninos caranguejos...
há flores por todos os lados
elas chamam teu nome
e onde perecem as saudades?
não sei ...
talvez aqui dentro

Lúcia Gönczy



íntima implosão dos sentidos
a face oculta desvenda-se; eclode
quando em sono fecho os olhos
e em sonho eu te toco
é o sentir real
cheiro gosto pele pelos
acordar com o aroma
e ter o corpo impregnado
da essência


Lúcia Gönczy



sofro o teu silêncio
aceito tuas costas no meu peito
tomo parte, brinco disso
depois faço a mágica do sumiço
caio no poço da saudade
o que me transformou em pedra
o que me empedrou as lágrimas
o que ressuscitou meu abismo
e vôo sem asas
e me atiro de cara
nenhuma dor, nenhum sangue
só um pouco de mágoa
que curo com outras cicatrizes...


Lúcia Gönczy


poesia


poesia é tocar
o céu da boca
com a língua
possuir a alma
sem abraçar o corpo
beijar com os olhos
a cada encontro
clandestino

poesia é fomentar desejos
fazer fumaça
pegar fogo
virar cinzas

ultrapassar a linha tênue
existente
entre os tempos
de chegadas
e partidas

poesia é ser o ser
do teu ser
mesmo separados
até ficar de vez
entranhada
em tuas vísceras



Lúcia Gönczy


~*

nossos mortos não vestem luto
perambulam pelas ruas
dormem sob viadutos
comem ratos
bebem água de esgoto

nossos mortos não vestem luto
possuem o olhar parado
andam em círculos
não tem família nem amigos
são seres excretados
como as fezes que os vestem

nossos mortos não vestem luto
sobrevivem porque a vida é forte
e embora isso não te diga nada, saiba:

nossos mortos não vestem luto
nossa consciência é depravada
nessa ausência de sentidos
somos nós, alienados...

nossos mortos não vestem luto
nossos mortos estão VIVOS!

Lúcia Gönczy



...

Homenagem à poetisa Rosane Silveira


.


Rosane Silveira recebe nossa homenagem aqui na Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector, através de seus poemas aqui publicados:



Sou ou não sou

Sou ou não sou
não tenho essa de meio termo
de meio tempo
de estiagem, de aparagem
ou sou tempestade ou céu azul
ou sou maresia ou ventania
ou sou mar calmo ou mar bravio
sou densidade e intensidade
leveza e pureza
ou um pesado fardo e profana
não tenho meio termo nem sigo padrões
faço eu mesma minhas próprias previsões.
Sou tudo ou não sou nada
sou poeira ou pó da estrada
sou...sou densa...quente...bravia
perdida...felina...da vida sou amor.

Rosane Silveira



Crucificada pelo amor

Sim, eu sou uma pecadora
daquelas absolutas que reina em si mesmo
Crucifica-me então por amar
por querer sentir a essência da vida
Crucifica-me
por querer mais e mais de tudo
ir até o âmago o fundo
Crucifica-me por querer o gozo pleno
o delírio louco
o amor insano
Crucifica-me por eu ser quem sou
uma fêmea no cio sedenta do néctar da vida
Crucifica-me
mas venha sem pressa
ainda tenho muitos pecados à cometer
quero ter a alma livre antes de morrer
em um último orgasmo.

Rosane Silveira












Fim de caso

Estabeleceu-se então
uma tristeza profunda
entre aqueles amantes
que dizem-se adeus
meio que sem querer
fechou-se o ciclo
encerrou-se os sonhos
ficaram os dois ali
inertes parados
estagnados olhando um
a dor do outro
e pensando se tudo não
poderia ter sido evitado
ficou ali...jogado no chão da tristeza
e nas paredes da imcompreensão
todo amor derramado
depois que perfurado foi o coração.

Rosane Silveira




Dor


Se eu fosse derramar no papel
toda dor sangrenta que aflige minh'alma
deixaria aqui todas as minhas lágrimas
todos os meus sentimentos
todas as minhas sensações e emoções
e tudo o que sou
sairia daqui como um ser inerte
como uma casca,
como um nada
viveria por ai comendo
como louca o pó da estrada
sairia em desparada em busca de
algo que nem sei o quê
ficaria alucinada
flertaria com os manequins
falaria de amor aos postes enamorada
ah meu querido se te falasse
da dor que ora me aflige
seria como se tivesse sendo
açoitada pelo pior algoz
deixaria até me matar
se fosse pra estancar de mim
esse martírio de sentir-me assim
me refiz muitas vezes...
tentei reerguer meu corpo padecido
mas sucumbi-me tantas outras...
sinto-me cansada, tal como flor
despedaçada
e hoje derramo aqui o resto de mim
ficando em mim...o nada.

Rosane Silveira




Labirintos de mim

Vasculhei-me tantas vezes
fiz inúmeras e incontáveis
buscas por mim
que se perdeu de ti
na curva da vida que te levou
deixando o martírio de não mais tê-lo
perdi-me de mim
de ti...da vida
perdi-me
deixei-me então levar pela ilusão
de viver sem ti
eis que apenas sobrevivo
paradigmas a todo instante
são colocados diante de mim
me pondo em provas constantes
da solidão que ora me atormenta
e atordoa
falta-me ar...falta-me
e não sei guiar-me na escuridão
que agora se faz presente
vou caminhando, triste e vacilante
pelos labirintos perdidos de mim.

Rosane Silveira




Sofreguidão de amar

Quando a taça chega ao fim
quando o amor se esvai
chego a duvidar até de mim
se sou eu mesma ou
uma cópia absurda de mim
ou alguém inventado
fico meio que sem saida
temendo a despedida
colho sofregamente
qualquer respingo de amor
seja como for
vou do alfa ao ômega de mim
desfolho-me inteira, me despindo
de minhas besteiras
e peço-te tristemente
que se deixe ficar mais um pouco
ao menos até que minha taça se
encha de novo.


Rosane Silveira




Luz dos olhos teus

Hoje estou assim
sem saber o que fazer de mim
lá fora o mundo gira
aqui dentro a vida pára
dando lugar a inércia do ser
a amplitude da dor
que me incomoda
e atordoa meu tão já
sofrido coração
dor de amor...dor, mais que dor!
Agiganta as horas que passo sem ti
vejo lá fora uma flor se abrir
me convida a ir...sair!
e lá fora quando olho
o mundo todo se perdeu
sabe onde meu querido?
Na luz dos olhos teus.

Rosane Silveira




Só te peço

Guia-me nesse momento de dor
me sustente se eu cair
acolha-me em teus braços
e em um terno abraço me faça dormir

Senta-te bem próximo de mim
me fale de coisas boas e deixe as ruins
sêde porém meu melhor amigo
meu porto seguro meu abrigo

Toca-me como quem toca
em um cristal, hoje quebro
ao menor sinal

Vislumbre um horizonte limpo
e me mostre
até os pássaros cantando
qualquer coisa, não se importe.

Só te peço que me acolha
em teus braços e me faça repousar
nesse dia em que a tristeza insiste
em me acompanhar.

Rosane Silveira




Aconchego

Aconchegue-me junto a ti
minha alma cansada de vagar
por um mundo de ilusões
onde os amores são vãos

aconchegue-me junto a ti
e me fale de coisas boas
da alegria de dançar na chuva
de um lindo por do sol

aconchegue-me junto a ti
e fale manso ao meu ouvido
palavras de amor vindo
do teu coração

aconchegue-me junto a ti
e deixe teu corpo pousar
ao meu lado num abraço
terno depois do amor feito

aconchegue-me junto a ti
nesse encontro único, sereno
pleno de sentimento onde
o amor maior é o fundamento.

aconchegue-te a mim e fique
por pouco ou muito tempo...
mas só te peço aconchegue-te
agora, vem de pressa sem demora.

Rosane Silveira



A promessa

De que em momento algum
meu coraçao fará o teu chorar
a dor do desamor

Em momento algum irei proferir
contra ti palavras de abandono
ou de dor

em momento algum deixarei
rolar uma lágrima de tristeza
nos olhos teus

em momento algum deixarei
voce olhando o mar em total
solidão...

por fim em momento algum
deixarei que teus olhos vislumbrem
um futuro sem mim

a menos que teus olhos queiram
outras aragens e outros caminhos

ai te prometo
que deixarei ir...
mas levará o meu amor contigo

Rosane Silveira



Enamorada

Ah, meu doce amor
quanta brandura há em teus olhos
quanta ternura há em tuas mãos
que me afagam
Doce amor que me embala a alma
quando falas-me de ti com voz doce e mansa
quando olha em meus olhos e
sinto-me como tocada por anjos
amor em demasia, amor que santifica
e que torna passiva até a mais terríveis
das batalhas
é o teu amor, meu amor
amor que me enleva até o mais alto cume
do bem querer
do amor em querer-te
sentir-te
viver-te
e assim eu sigo por ti
enamorada...




Incansável Coração

És um guerreiro,
um nobre cavalheiro
que fortemente se prepara
pra mais uma batalha, caro coração

Estais em vias de entrar em uma guerra
mais uma batalha pela felicidade
veste-te com as armaduras da brandura
e da amabilidade

Carrega junto contigo
todo amor que tiver, será tua arma
vez ou outra use o escudo da autodefesa
mas só bem de vez em quando

Vá pra frente de batalha, abra-te bem
e deixe o oponente - amor entrar
e travar contigo uma guerra de emoções
nem se tente camuflar

caso saia machucado
fique só um pouco de lado,
só o tempo de sarar
pra logo depois uma nova guerra
com mais força você começar.

Rosane Silveira





A pena e eu

A pena com que escrevo
e as palavras que saem desordenadas
estão com pena de meu estado mental
estou agora no descontrole de mim

escrevendo coisas por ai
desabafos a torto e a direito
maquinalmente penso...nem reflito
sequer existo

palavras tolas e vãs
de sentimentos mais tolos
quereres sem querer
amores sem amar

Vida sem sentir, sequer viver
amor, dor...indolor
a inércia de mim me faz assim
até a pena com que escrevo
tem pena de mim.

Rosane Silveira



Alma só

lá fora possíveis gritos de alegria
possíveis palavras de amor
sonhos de alguém que ainda acredita
possíveis paixões arrebatadoras


lá fora música tocando
luzes piscando
pessoas falando
e o mundo girando

lá fora, a solidão não tem espaço
o burburinho da multidão camufla
a dor do abandono
de quem quer que seja

lá fora...lá fora
aqui dentro...morte subita
nos quarenta e cinco do segundo tempo
tudo parou...se consumiu...consumou.

Fim, perda?
não sei...
dor? talvez uma inquietante
lágrima? algumas

sem direito sequer a revanche
perda total, sentimento conturbado
tudo misturado
e uma inquietante solidão que me corrói
enquanto

lá fora...

ah lá fora o meu mundo padece
e esmorece e minha alma se entorpece
de dor, angustia e sensação de abandono
medo...

Rosane Silveira




Deserto de mim

Perdi-me por entre ruas e
vielas de minha solidão
caótica e triste...
arrastei-me até aqui e fiquei
esperando com sofreguidão
um gole do teu amor
um olhar de piedade pra mim
calor escaldante,
sentimento cortante
alma dilacerada,
algumas chagas e dores
e eu aqui...
no deserto árido e quente de mim.

Rosane Silveira




Que...


Que eu me perdoe mil vezes mil
e ainda assim consiga
pecar mais um pouco...
Que eu acalente amores
e até dores e ainda assim
queira amar mais e mais
Que eu não me limite em nada
que ainda assim,
com os percalços da vida
consiga sentir-me feliz
no fim da estrada
pois o fim...não é o fim
quando temos consciência de que
tudo foi feito
em detrimento da felicidade
do outro mas principalmente
em detrimento de nós mesmos
porque o amor é egoista
em sua essência...

Rosane Silveira





Amor que veio pra ficar


No mais profundo do seu ser
ela sabia que seria amada
deixou-se levar pela sua paixão
dando-se tão somente
ás mãos do homem amado

Aquietou sua alma e passou
a ouvir a dele, deu-se, entregou-se
e perdeu-se no amor que sente
vivenciou novos dias
de luz e paz

aquietou-se em si e pensou
daqui não saio nunca mais
tal sentimento de amor vivenciou
plena sentiu-se desfolhando-se
em amor.

Eis o retrato de uma mulher
apaixonada...serena, feliz
e entregue ao amor
de um homem sedutor.


Rosane Silveira




Despedida


E de repente ficou um gosto ruim na boca
as palavras proferidas tristemente
olharam-se pela primeira vez como estranhos
sentiu-se depois do amor meio profana
e ela saiu dali com a sensação de que era suja

Fim de amor, tentativa de reconcilição
quando o cristal quebra
não tem mais solução

Tardou o momento do entendimento
ela ficou olhando ele despido e
acreditou estar vendo uma alucinação
não era aquilo que ela queria não

Nua na cama, tentou vestir-se
porém estava exposta a alma
mais do que o corpo
e ali ficou olhando o nada
encolhida em sua tristeza

Fim de caso, fim de amor
início da dor...da tristeza que
acompanha os amantes
no fim da estrada, depois de tudo
fez-se o nada

e ela ali ficou sozinha
olhando o vazio que a consumia
tentou acreditar que por fim
sobreviveria a dor do amor perdido
numa despedida.

Rosane Silveira



Decência


De todas as besteiras que fiz
só não soube dizer-te adeus
com decência
preferi acreditar na minha demência
de sentir-me amada por ti

apregoei aos quatro cantos
um amor que não existiu
deixei-me levar pelo desengano
da dor massacrante de sentir-te meu

acasalei varias vezes
com os desmandos
de uma tristeza que me consumia
deixando em mim chagas mal curadas

afaguei-te o ego e a alma
desfiz de mim pra te compor
e por fim, disse-me em uma noite
triste do meu amor

tateei no escuro da noite
buscando a minha sanidade
tola discrepancia de quem
ama sem vaidade

pareço ausente de mim hoje
fragmentei-me muitas vezes
tentando compor-te um poema
que me desse um pouco de decência

por fim estou aqui
desfazendo-me em palavras
num último suspiro de amor
onde o que manda é a minha dor.

Rosane Silveira





Não fale


Não fale nada, deixe
que o silencio traduza
todo esse momento
de dor onde tu tentas
desesperadamente
não ferir-me mais

Não fale nada
deixe a inquietante
ausência de paz
aquietar-se nesse momento

Não fale nada
não precisa dizer nada
tudo já foi dito
quando olhei os olhos teus

Não fale, não sinta, não pense...
nem lembre dos momentos meus
que foram teus


Não fale, deixe que a agonia
de perder-te pelo menos
seja decente...não fale...

deixe que o silencio grite
a dor do amor perdido
no vão das palavras não ditas.

Rosane Silveira



Falou-me


Falou-me o amor ao ouvido
disse-me que sofrer é preciso
calar na alma a dor do desamor
e deixar-se um pouco inerte
na alma da vida
falou-me mansamente ao ouvido
o amor e sentenciou-me tal como
um algoz
ao sofrimento triste e voraz
falou-me...
calou-se e
perdeu-se no íntimo de mim
tal amor doído sentido
e perdido de mim
que foi escorrendo pela solidão
tardia e demasiada pra um só sentir.

Rosane Silveira





Fim de caso

Estabeleceu-se então
uma tristeza profunda
entre aqueles amantes
que dizem-se adeus
meio que sem querer
fechou-se o ciclo
encerrou-se os sonhos
ficaram os dois ali
inertes parados
estagnados olhando um
a dor do outro
e pensando se tudo não
poderia ter sido evitado
ficou ali...jogado no chão da tristeza
e nas paredes da imcompreensão
todo amor derramado
depois que perfurado foi o coração.

Rosane Silveira





Labirintos de mim

Vasculhei-me tantas vezes
fiz inúmeras e incontáveis
buscas por mim
que se perdeu de ti
na curva da vida que te levou
deixando o martírio de não mais tê-lo
perdi-me de mim
de ti...da vida
perdi-me
deixei-me então levar pela ilusão
de viver sem ti
eis que apenas sobrevivo
paradigmas a todo instante
são colocados diante de mim
me pondo em provas constantes
da solidão que ora me atormenta
e atordoa
falta-me ar...falta-me
e não sei guiar-me na escuridão
que agora se faz presente
vou caminhando, triste e vacilante
pelos labirintos perdidos de mim.

Rosane Silveira





Gostosura

És gostosura sim,
com todos os predicados
pois tens um coração brando
ainda que machucado

És gostosura sim
Porque trás na alma
o dom do poeta mesmo sem fazer poesia
sente pressa de ser feliz, ama e adora uma anarquia

És gostosura sim
porque tens gentileza no olhar
e principalmente
no falar

És gostosura sim
mas uma gostosura diferente
daquelas que
encanta a toda gente.


Rosane Silveira




Queria...


Queria poder falar
mas um nó na garganta
e um embargo na voz
me cala...

Queria poder gritar
mas meus pulmões apertam-se contraindo
e o meu ar se tornou pouco
quase nenhum

Queria poder chorar
mas lágrimas não brotam de meus olhos
doloridos pela ânsia de desabafar

Queria poder sumir
ou ir até ai

Queria poder gemer
pois meu corpo inteiro
dói pela dor de te perder

Queria poder sangrar
até a morte se preciso fosse
mas tudo oque tenho é uma inércio do ser

Queria poder tudo, queria poder nada
queria...
que...
ria...
a.

Rosane Silveira





Planeta Terra – planeta berra

Ò terra plena de angústia e dor
Porque lamentas ò bela terra
Tanto desamor?

Fostes massacrada
Tristemente humilhada
Despojaram sobre ti restos
E uma dor sem fim

Deram-lhes tapas na cara
Fostes covardemente violentada
Arracaram-lhes os filhos teus

Destroem tudo o que vêem
Disseminam chances de vivência
Por total incoerência

Triste povo que lamenta
O chão em que vive e planta
Triste alma de tormenta

Secam tuas águas
Teus prados verdes viram nada
E teus olhos sobre o mundo se fecha
Em desespero e dor

Teu coração quase parando
Suplica ainda um pouco de amor
Olham-te alguns ternamente
Há esperança ao invés da dor

E em oração pedimos ansiosos
Que por fim todos te auxiliem
Te cuidem e te amem

Ò mãe gentil, ò terra nossa
Planeta de luz, planeta de amor
Gritemos em altos brados o
Amor antes esquecido

Façam-se nascer centelhas de amor
Num planeta
Chamado redenção
nossa Terra nosso chão.


Rosane Silveira




Perder-se também é caminho


Perder-se também é caminho
disse Clarice Lispector tão sabiamente
concordo com ela
nos perdemos sempre todos os dias
em caminhos que pareciam retos
e do nada se tornam tortuosos e pedregosos
achar o caminho de casa se torna necessário
com os pés cansados e as mãos sujas por
tatear muitas vezes em caminhos escuros
enlameados pelos apelos do mal
fazem com que nos sintamos cansados
e desejosos tão só de um canto pra ficar
encostar-se sem ter que se sujar
perder-se também é caminho
encontrar-se pode ser perder-se mais:
perder-se em meio a ilusao de achar ter se encontrado
e quando vê, não se encontrou em nada,
não encontrou nada
está tão perdido no fim...quanto no inicio da estrada.

Rosane Silveira




Criança de rua

Humildemente uma criança passa
invisível aos olhos atentos dos homens
vende balas, doces e sonhos
seus sonhos que se tornaram desenganos

Humildemente uma criança fala
surdamente aos ouvidos dos homens
que não houvem seu pedido de socorro
sua necessidade de conforto

Humildemente uma criança chora
um choro calado, sofrido e desamparado
quase desesperado
sonhando desafortunado por um prato, um amparo

Humildemente vive,
Humildemente uma criança morre
no pé do morro desprovida
de chance de socorro sendo
sendo mais um na estatística

Humildemente vive,
humildemente morre
triste dor dos filhos da terra
triste lamento de um coração que
tão somente espera.


Rosane Silveira





Consumado


E eu, com todo meu amor
me deixei levar
deixei que tuas palavras
me consumissem por inteira

desvenciliei-me de mim
e me dei pra ti
carreguei todos os fardos
de um amor mal-resolvido

entreguei a ti o meu melhor
e todo o meu tormento
de viver só

acreditei nesse amor
de um só sentir
e por fim, no fim
vi, que estava consumado
consumou-se o fim.

Rosane Silveira




Maria velha

(poema em ode a todas as Marias catadoras de papel)

Maria Velha era uma mulher
um tanto estranha
todos os dias ia pela rua
catando papel


suava, cansava, andava
mas não se entristecia
dura vida a vida
de Maria

pelos caminhos da vida
ela ia
com seu carrinho puxando
pelo sol ardente
ela ia toda sorridente

e assim Maria ia
e assim Maria vinha
Maria como tantas outras
que vão pela lida
fazendo sua vida

Ahh Maria Velha
como pode a quimera
de rir-se assim
parece que ri até de mim

Doce exemplo do ser
de gente que sabe viver
Maria velha
Velha de guerra
maria de muitas histórias
e tantas memórias

és tu Maria...

Rosane Silveira




Louca sanidade


Angustia-me hoje e
enlouquece-me
a sensação angustiante
de deixar-te
balbucio palavras surdas
a ouvidos mudos
ando estaticamente pelos cantos
de minha redonda vida
vislumbro hoje uma noite
com sol escandante
amanhã bem sei que o luar
estará lindo pela manhã
Já ouvi dizer que cairá chuvas
de pétalas de rosas
e os jardins estarão floridos
de gotas de chuvas
aquele piano que tu gostavas
todas as cordas arrebentaram
não toca mais as melodias
que teus olhos proferiam
A rua agora está vazia
cheia de gente que não tem
pra onde ir anda de um lado
para o outro de costas
sabe aquele gato que latia
o cachorro miou atrás dele
até que fosse embora...
ahhh como agora o silencio
grita no romper da aurora
e os sonhos que agora sonho
acordada...
você não tem noção
são páginas viradas
de um livro sem letras e sem
páginas
apenas eu e a louca sanidade
escrevem sem sentidos palavras
que mascaram a dor de te perder.

Rosane Silveira




Que eu me perdoe mil vezes mil
e ainda assim consiga
pecar mais um pouco...
Que eu acalente amores
e até dores e ainda assim
queira amar mais e mais
Que eu não me limite em nada
que ainda assim,
com os percalços da vida
consiga sentir-me feliz
no fim da estrada
pois o fim...não é o fim
quando temos coinciência de que
tudo foi feito
em detrimento da felicidade
do outro mas principalmente
em detrimento de nós mesmos
porque o amor é egoista
em sua essência...

Rosane Silveira

Relembrando Clarice - Carta à sua irmã





Nesse mês de dezembro de 2008, na Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector, nós do Artforum Mundi Planet & Artforum Brasil XXI continuamos a homenagear poetisas e pintoras contemporâneas que participam da "Cidade das Artes" e do "Mundo das Artes" - espaços culturais que são desenvolvidas na rede Orkut, desde março de 2007.


E para relembrar Clarice Lispector, registramos aqui um documento precioso, a seguir:

Carta de Clarice Lispector à sua irmã.


A Tania Kaufmann


Berna, 6 janeiro 1948


Minha florzinha,

Recebi sua carta desse estranho Bucsky, datada de 30 de dezembro. Como fiquei contente, minha irmãzinha, com certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há certas frases suas. Não diga porém: descobri que ainda há muita coisa viva em mim. Mas não, minha querida ! Você está toda viva! Somente você tem levado uma vida irracional, uma vida que não parece com você. Tania, não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar, querida irmã, minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito de si mesma e o respeito de suas próprias necessidades, depois disso fica-se um pouco um trapo.Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar, e contar experiências minhas e de outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou falta de caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos levar de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.
Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi ? assim fiquei eu...., em que pese a dura comparação....Para me adatar (sic) ao que era inadatável (sic), para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus guilhões, cortei em mim a força que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante.Espero que o navio que nos leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida, que não era maravilhosa mas era uma vida, eu me transformei inteiramente. Mariazinha, mulher do Milton, um dia desses encheu-se de diferente, não era? Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora e disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com uma lasidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus.

Não haveria nem necessidade de lhe dizer, então....Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Minha irmãzinha, ouça meu conselho, ouça meu pedido: respeite mesmo o que é ruim em você – respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você – pelo amor de Deus, não queira fazer de você uma pessoa perfeita – não copie uma pessoa ideal, copie você mesma – é esse o único meio de viver. Eu tenho tanto medo de que aconteça com você o que aconteceu comigo, pois nós somos parecidas. Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia – será punida e irá para um inferno qualquer.

Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma moral amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber – pois somente saber de sua presença me transformaria e me daria vida e alegria. Isso seria uma lição para você. Ver o que pode suceder quando se pactuou com a comodidade de alma. Tenha coragem de se transformar, minha querida, de fazer o que você deseja – seja sair nos week-end, seja o que for. Me escreva sem a preocupação de falar coisas neutras – porque como poderíamos fazer bem uma a outra sem esse mínimo de sinceridade ?

Que o ano novo lhe traga todas as felicidades, minha querida. Receba um abraço de muita saudade, de enorme saudade de sua irmã

Clarice.

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Brasil, 5 de dezembro de 2008 - sec XXI

Grupos Artforum Mundi Planet & Artforum Brasil XXI
-ARTFORUM UNIFUTURO - Programa Univertsidade do Futuro "Telhados do Mundo"
-Escola Brasileira de Ecologia Humana "Mandala - Zen"
-Projeto 1ª Antologia "Cartas ao Futuro" de Mulheres Contemporâneas
Autoria e Coordenação: Ana Felix Garjan
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www.cidadeartesdomundo.com.br

ARTE E CULTURA SÃO PÓLOS DE DESENVOLVIMENTO.
ESTAMOS TRABALHANDO PARA O NOVO MUNDO MELHOR.
www.artforumunifuturobrasil.org
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terça-feira, 14 de outubro de 2008

Projeto 1ª Antologia "Cartas ao Futuro" de Mulheres Contemporâneas



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O Projeto Primeira Antologia "Cartas ao Futuro" de Mulheres Contemporâneas, foi divulgado em 10 de outubro de 2008 - XXI, através de mensagens nos perfis de redes sociais e através de mails para artistas plásticos, poetas, escritores, produtores culturais e jornalistas.

O lançamento deste projeto foi também divulgado nos perfís "CIDADE DAS ARTES" E "MUNDO DAS ARTES", que representam os Grupos ARTFORUM MUNDI & ARTFORUM BRASIL XXI que são desenvolvidos no Orkut.

Este projeto será amplamente divulgado em todas as comunidades relacionadas com Arte, Literatura, de Poesia e Escritores, e outros perfis afins, como no Multiply, HI5, e os Grupos Artforum Mundi Planet & Artforum Brasil XXI estão representados desde março de 2007, por Ana Felix Garjan.

O lançamento do Projeto 1ª ANTOLOGIA "CARTAS AO FUTURO" de Mulheres Contemporâneas, cujo Livro Ontológico em primeira versão simplificada, em 2009. A partir daí pretendemos que essa obra venha a ter uma Edição Especial , a partir de parcerias e apoios com organizações culturais e empresas brasileiras, para uma publicação especial na virada da segunda década do século XXI, a partir do ano de 2010-2011, conforme previsão da autora do projeto, Ana Felix Garjan - Grupos Artforum Brasil XXI.


Brasil, 14 de outubro de 2008.
Ana Felix Garjan

Coordenadora do Projeto "Cartas ao Futuro"
Programa Universidade Aberta do Fututo " Telhados do Mundo"

Visite nossos sites e blogs relacionados:

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Estamos desenvolvendo um projeto importante que faz parte do Programa "Novo Mundo Melhor", lançado em Março de 2007, pelos Grupos Artforum Mundi Planet & Artforum Brasil XXI - Programa Universidade Aberta do Futuro "Telhados do Mundo" - 10 anos. Porque pensamos futuro - agora e amanhã.


Temos satisfação em divulgar na Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector, o roteiro do Projeto Primeira Antologia "Cartas ao Futuro" de Mulheres Contemporâneas XXI, que um dia será publicada, a partir das parcerias e apoios, uma vez que se trata de um projeto amplo, uma Antologia terá grande importância para a literatura brasileira e internacional.




Placas do roteiro do Projeto:



















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Projeto Primeira Antologia Cartas ao Futuro
de Mulheres Contemporâneas

http://www.lamaisondart-anagarjan.com.br/cf01.htm

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Eixo de Arte e Cultura Artforum Brasil XXI


Representações do Artforum Mundi & Artforum Brasil
no Eixo Minas, Rio e São Paulo.
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Grupos Artforum MundiPlanet
& Artforum Brasil XXI
www.cidadeartesdomundo.com.br
Maison D'Art Ana Felix Garjan
www.lamaisondart-anagarjan.com.br
...
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terça-feira, 30 de setembro de 2008

Homenagem à Poeta e Pintora Luiza Caetano de Portugal


Telhados de Lisboa, de Luisa Caetano.

Homenagem dos Grupos Artforum Mundi Planet &
Artforum Brasil XXI à Poeta e Pintora Luiza Caetano de Lisboa/Portugal.

CANTO A LISBOA"

Lisboa
se vestiu de Rio, languidamente
sensual! tortuosa! brilhante!

Bate o Sol na Mouraria
faz sombra no Bairro Alto,
porque a festa é no Rossio!

Lisboa se vestiu de Rio
na franja do frio
dos embandeirados
barcos no Tejo.


há fumos! há cheiros na brisa
perfumes de namorados

Lisboa,
Coberta de luzes
qual manto de lantejoulas
na Rua do Capelão
Marinheiros soltam amarras
e as varinas o pregão
juntamente... os seus amores

Tomando café na Ribeira
entre um buquê de flores,

Lisboa chora!
Lisboa canta !
Lisboa Ri!

se esfuma no canto do Rio
comendo castanhas assadas
em cada final do dia,

Lisboa de mãos-dadas
apaixonadamente!

luizacaetano

06/09/07

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

" O SOL DA MINHA TELA"


Guardei
um
Sol
para ti
que és
a minha pessoa errada...

Um horizonte!
Uma fonte!

Um Monte!
Um Céu! Uma nuvem!

Um sonho feito de nada...

Guardei
um SOL
para ti

Uma Ilha!
Um Continente!

uma saudade
latente
Pintada
em cada cor!

Em minhas mãos
uma aliança
e a minha jura sagrada

Tudo, tudo Meu Amor!
Tudo feito de quase nada...

luizacaetano22/09/2006

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


Almas Gêmeas, de Luiza Caetano


"POEMAS"

Na serena
gaveta do poeta,
a serpente erguida
em armada espoleta.

Toque de pedra!
Roçar de gato!
Ardósia riscada
Letras pressentidas

Jogo de palavras!
Violadas! Batidas!

Riso!
Risco!
ou
Ritual

O gato mia !
A gaveta chia!
A bofetada sofre !
A palavra liberta
da serpente o veneno!

O poeta chora
falivelmente pequeno.


luizacaetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
" O R G I A S "


Entrar dentro de ti
como no mar,

Mergulhar-te
como se fosse a primeira vez,

viajar ao paraíso das algas!
dançar nas ondas !
ferir-me nas rochas!
no odor dos sargaços!


Depois...
da noite do dia,
da orgia dos cansaços

me estenderei no fundo
do fundo mais profundo
de ti e de mim
e
beliscarei a vida.

Luiza Caetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

E foram muito felizes, de Luiza Caetano

"LIBERDADE"

Gritar é proíbido?

Façamos então um esgar
um silencioso movimento
na tortura desse momento...

Deixa o nó se desatar,
como o vôo da borboleta

- também podemos voar...

Não me amordaçes o grito
de nervos libertos e gozo
- o céu é o infinito !

Espera-nos o areal,
uma cama de vento e de sal,
um vendaval de emoção,

- Um cristal em cada mão!

luizacaetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
UMA GOTA DE ORVALHO"


Se
eu roubar âs rosas
as suas pétalas
e te vestir de vermelho ritual
num gesto possuído de desejo,

pétala a pétala
pressentida de carmim...

Se eu roubar às rosas
o teu cheiro
numa constelação
de brisa e de ardor
demoradamente
desmembrar a flôr...

Se eu possuir o coração da rosa,
rumor de água a fluir
no interior da madrugada...

Serei como um pássaro a emergir
ou
uma gota de orvalho
no céu do teu corpo

luizacaetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

POEMA PARA UM MENINO DA GUERRA"


Menino-homem,
que trazes ruído de guerras
no olhar parado,

que trazes nos gestos cansados,
nesses gestos de menino-velho
patéticas imagens
de cadáveres bradando sangue
no verde dos teus caminhos!

Menino-homem,
tu
que acordaste espantado
no meio dum tempo que te roubou a idade,

Tu,
que acordaste homem
de mãos crispadas numa metralhadora!

Tu,
que nasceste roubado de tudo...

- até dos infinitos de azul
porque riscaram o teu céu
de negras bombas assassinas ?
e te vedaram os horizontes de menino?

Tu,
cujos braços
apenas aprenderam a matar,

Criança
também não sabes!
Também te roubaram
o dom maior do Ser Homem,

O DOM DE AMAR!

Menino - Homem,
como me dói pensar-Te!

luizacaetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Florbela Espanca, de Luiza Caetano


"ACORDEI SONHANDO"

Acordei sonhando
em cima da areia,

o Sol se fôra
estava Lua Cheia,

mãos cheias de nada
brincando com a vida.

Acordei sonhando
que estava perdida!

Era uma Deusa?
ou
uma Bruxa demente?
ou
apenas
Uma condenada
à galé dos sonhos?

Colhi esse instante
de ave ferida

Sim,
acordei sonhando!

- A praia-mar
fora há séculos!

luizacaetano

25/08/07

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨
..
"LEMBRANÇAS DE ONTEM"

T`espero na Quinta Feira
lá na esquina das saudades
Vestida de arlequim.

Sexta também estarei
na pracinha dos Afectos
de rosa ansiosa ao peito

Ainda que não apareças
com o trajo de jasmim

Fico na parte da porta
mesmo em frente ao cinema
da Via La Vie en Rose

Negra sala escura
sono, sonho, delícia

e,
depois vamos beber
naquele bar onde a música
toca com dedos de chuva
a magia dos encontros

Muito antes da aurora
marcar o dia de ir
subiremos a Serra Madre
onde a terra cheira
a riso quebrado de sombras

e
os ponteiros nervosos
como navalhas
marcam o tempo
de ir embora

luizacaetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

"À FLOR DA PELE"


Vens breve
como a brisa
quase sempre
à flor do tempo.

Ficas-me no entanto
indelevelmente
à flor da pele...

como pétala de Outono
num gesto de adeus!

ou
um som diáfano
musicado pelo vento!

Vens breve
como os dedos da noite
abandonadamente.


LuizaCaetano

¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

Solidão Acompnhada, de Luiza Caetano

"PARA O MAIS LONGE POSSÍVEL"

Entrou na estação do trem. Dirigiu-se à bilheteira tendo ficado a olhar os destinos -de forma alheada, inconsequente.

O empregado da bilheteira, depois de a olhar curiosamente de soslaio esperando ela pedir um destino e, supreso pelo silêncio, lhe perguntou - É para onde?
Sem quase levantar os olhos - ela respondeu: é para o mais longe possível. Não importa!

Pagou o bilhete, guardando o seu destino amarrotado na algibeira . Sentou-se esperando o trem chegar. Lá fora o Outono despedia-se num streap tease de folhas bailadas na nostalgia amarela e castanha da brisa. O trem chegou no meio duma baforada de fumo, anunciando sua chegada com estridência. Sobressaltou-se, caminhando lentamente para a sua carruagem com a sensação de estar subindo para o cadafalso.

Entrou, tendo procurado um lugar junto à janela na ideia de que o filme da paisagem ante seus olhos a distraíssem. O trem que até não ía com muita gente, esganiça seu grito de partida e ela se aconchega esquecida do que estava ali a fazer. Para onde ía! Porque partia!

O xanax, entretanto tomado e o ronronar do combóio a mergulharam num sono esquecido e profundo.. Entre o acordar e o adormecer a sua vida apagou um dia e uma noite. Foi acordada pelo bilheteiro que a abanou - Menina, estamos na Estação Central de Paris. Fim da Linha! Ela abre os olhos espantados e patéticamente distantes. - Paris????

Pega na bagagem (um simples par de jeans, um camisolão, uns ténis, 1 tela, 2 pincéis e 4 tubos de tintas) e sai para as Ruas dessa Cidade Luz olhando espantada , acordando memórias de alguns lugares da sua juventude.

Lembrou-se de um hotelzinho em Saint German des Prés. Apanhou um táxi e deixou-se embalar pelas recordações de Paris! Tinha então 20 anos. As mãos cheias de sonhos, as algibeiras vazias e a alma plena de verdes ilusões. Paris! Paris! era nesse tempo o rio para onde todos corriam em busca da cidade cultura, da boémia, da loucura e do amor.

Chegou ao hotel. Pediu um quarto e subiu no elevador velho. Todos os elevadores dos velhos hotéis de Paris.

Abriu a mala, pegou na tela, nos pincéis e ali mesmo no receptáculo do sabonete, deitou as tintas e atacou a tela de forma alucinante. Pintar o quartier Saint Gérmain des Prés? A sua cabeça era uma janela onde a vertigem se instalava num movimento que queria passar à tela.

Não tinha fome! Não tinha sede. Pintou até adormecer.Caíu num sono profundo só despertado pelo pessoal da limpeza.- Onde estou? Que faço aqui? - ergueu-se e os seus olhos se pregaram à tela. Horror!!
- Parecia um campo minado. O fundo era negro e o vermelho escorria como sangue vivo por toda a tela, fazendo pequenas poças.
- Quem pintou este horror?- Meu Deus, será que fui eu quem pintou isto?

Debaixo do chuveiro numa catarse emocional. Suas lágrimas se juntavam à água corrente! Os soluços rebentavam-lhe o peito. - Vestiu-se. Agarrou a mala e saíu para a rua onde a neblina se fechava sobre a sua cabeça em tons húmidos de cinzentos luminosos.

Finalmente, uma fome voraz a fez sentir-se viva. Tomou o café da manhã. Café leite, pão croissants e mais café. Pagou. Apanhou um táxi para o Aeroporto. Na bilheteira pediu um bilhete para Lisboa.

Quando sobrevoava a Cidade branca de Lisboa, entre lágrimas e angústia, pela primeira vez, Sorriu!

O MAIS LONGE POSSÍVEL, ESTAVA AFINAL DENTRO DELA!

luizacaetano13deNovembro2006


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Homenagem dos Grupos Artforum Mundi Planet
& Artforum Brasil XXI & La Maioson D'Art Garjan

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segunda-feira, 29 de setembro de 2008

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Arte e poemas de Luisa Caetano


Barco da Saudade, de Luiza Caetano
a
Florbela Espanca, de Luiza Caetano

Homenagem a Eça de Queiroz, de Luiza Caetano

Pessoa de Lisboa, de Luiza Caetano




Pensamentos de Clarice Lispector
... "estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o
que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda".(Clarice Lispector)

"Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar".(Clarice Lispector)

"Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... Ou toca, ou não toca".(Clarice Lispector)

"É difícil perder-se. É tão difícl que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo." (Clarice Lispector)

..."estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender.Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda".(Clarice Lispector)

"Passei a vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar".(Clarice Lispector)

"É difícil perder-se. É tão difícl que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo."(Clarice Lispector)

"O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós."(Clarice Lispector)

"Porque há o direito ao grito, então eu grito." (Clarice Lispector)

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Homenagem à pintora e poetisa Ana Luisa Kaminski

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Na Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector registramos hoje, dia 20 de agosto de 2008, a presença da arte e poética de Ana Luisa Kaminski. Ela é pintora, poetisa, e também uma estudiosa da obra de Clarice Lispector. Divulgar a arte de Ana Luisa aqui, na Academia de Clarice Lispector, é uma honra para a arte e a poesia, além de nossa homenagem à escritora Clarice Lispector, através da primeira parte da dissertação sobre a obra de Clarice,
Passagens e impasses clariceanos: entre a ostra e a crosta de autoria de Ana Luisa Kaminski.

Ana Luisa aniversaria na data de hoje, dia 20 de agosto. Ela é da cidade de Florianópolis - Santa Catarina.

A seguir, algumas de suas pinturas, que fazem parte de uma das coleções de sua obra.


Violoncelista Alizarin, Ana Luisa Kaminski


Mulheres musicais, Ana Luisa Kaminski


Ninfa azul, Ana Luisa Kaminski


Cabeça azul, Luisa Kaminski


Olhando para o infinito, Ana Luisa Kaminski


Poemas de Ana Luisa Kaminski, a seguir:


Cinzas & Estrelas



Chuvas cósmicas e vôos
no intra-caos abissal
cometas ariscos, poeiras
gotas, pingos, vendaval
acontecem nas manhãs
molhadas-móveis de maio
constelações, conjecturas
das mil danças, o ensaio...

Cristais, anéis, elipses
luas e espirais
galáxias fumegantes
e pérolas astrais
estrelas trituradas
fuligens, sais, vapores
lampejos, cintilâncias
memórias de amores...

Cacos de conchas, luzes
céus e pratas marinhas
águas, ritmos, rituais
incandescentes entrelinhas
encontros e correntes
colares, curvas, caracóis
no espaço livre e nebuloso
do mergulho entre - lençóis...

Cinzas de sóis e sonhos
restos, farelos, grãos
adornando pés, cabelos
pescoços, seios, mãos
na travessia da noite
brilhos, pós e pedrarias
fios de nuvens violeta
fiapos de fantasias...




Ana Luisa Kaminski, 17/05/2007




Véus, vôos e avessos


Quando amo plenamente
abro os portais da alma
sem medo de me lançar
ao alizarim, ao azul
arrisco a entrega inteira
sem temer vôos ou quedas
vislumbro o céu e o avesso
nos olhos descortinados
vejo verdes, lilases, anis
cor-de-noite, terra, gris
janelas abertas, paraísos...
Coração leve, apaixonado
livre dos véus da ilusão
avança no vazio violeta
inventa novos jardins
revive entre nuvens e luzes
ultrapassa limites, cintila
num trânsito eterno-etéreo...




Ana Luisa Kaminski, agosto/2007

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Ana Luisa por Ana Luisa Kaminski:

assimétrica, apaixonada, patética...
ambivalente combinação de ex-centricidade e con-centração...
Amo a arte da vida, a natureza, pessoas e bichos - e adoooooro pintar!!!

Visite o trabalho da artista aqui:

www.luisakaminski.nafoto.net
http://arteglobal.ning.com/profile/analuisakaminski
http://recantodasletras.uol.com.br/autor.php?id=19762
www.spaziosurreale.com.br

Orkut de Ana Luisa Kaminski:
http://www.orkut.com.br/Profile.aspx?origin=is&uid=12453921384235700144



Mundo, 20 de agosto de 2008
Ana Felix Garjan
Grupos Artforum Mundi & Artforum Brasil XXI
www.cidadeartesdomundo.com.br


A seguir, uma parte da dissertação sobre a obra de Clarice Lispector, de autoria de Ana Luisa Kaminski.



CAPÍTULO I

Passagens e impasses clariceanos: entre a ostra e a crosta
1. Passeios

. Os textos de Clarice Lispector, “objetos vivos” e inventados que tornam visível o invisível, e nos mostram outro mundo através da palavra, podem ser descritos como portas de passagem, fascinantes aberturas para o espaço clandestino do informe, do silêncio e do vazio intocável. A máquina literária clariceana, ao longo de 37 anos de produção, abriu a brecha por onde vaza esta sensação de plenitude do não-sentido, permitindo a passagem tanto de personagens quanto de leitores para uma outra realidade, existente sob a crosta do cotidiano banal. Segundo Nádia B. Gotlib, em Clarice Lispector o exercício da linguagem funciona como exercício de “nomear o não-nomeável”, instrumento de “tocar no ponto que não é tocável”, de se atingir o segredo, desenterrando “o pior e o melhor de nossa condição humana, que já não é nem mais humana”, “é condição da espécie animal, sobretudo vital”.
Percebe-se nas obras clariceanas, conforme observa Benedito Nunes, a tentativa de “dizer a coisa sem nome, descortinada no instante do êxtase, e que se entremostra no silêncio intervalar das palavras” •: o sentido do real só é atingido quando a linguagem fracassa em dizê-lo. Desse processo da linguagem, presente desde a publicação do primeiro romance de Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem (1944), e que culmina com Paixão Segundo GH (1964), resulta a “ficção erradia”, uma “escrita de fascinação” que acontece sob a “perspectiva da introspecção” . Além disso, a escritura clariceana ultrapassa e delimita as fronteiras de gênero, deixando circular seus produtos textuais pelos espaços do romance, da prosa poética ou da crônica, sendo preferível chamá-los de “ficções ou pulsações”. Esta escritura transgressora e desviante desova objetos vivos e abre uma clareira (zona neutra ) para a invenção de si, a partir do mergulho do ser numa realidade diferente da sua vida diária banal, depois do qual acontece uma volta ao curso normal da existência. A personagem volta ao trivial, porém, já transformada pela vivência paradoxal de ter adentrado esta “zona extraordinária em que se experimenta uma verdade pelo deslocamento do cotidiano” – o que provoca a abertura de frestas - sendo exatamente isto o que intenta a “experiência de risco da linguagem” de Clarice Lispector, diz Nádia Gotlib.
Esta análise tenta revelar como esta experiência de saída do cotidiano banal (que provoca uma interrupção na rotina repetitiva das personagens) relaciona-se diretamente com a questão da automatização humana no mundo moderno e maquinizado, abordada com freqüência nos textos clariceanos. Estes nos desafiam a arriscar uma mudança, a encontrar desvios que nos retirem da rota óbvia, automática e infalível. Ou seja, tematizando sobre a automatização e revelando certa rigidez na rotina do ser humano moderno, as ficções de Clarice Lispector provocam reflexões e rachaduras na crosta do pensamento massificado.
É este o caso do conto “Amor” (publicado em 1952 em Alguns Contos, e republicado em 1960, fazendo parte do livro Laços de Família ), texto onde acontece um desvio de percurso que afeta a vida da protagonista e abre uma fenda no seu dia-a-dia banal e domesticado, fazendo vazar a matéria nauseante do inumano e provocando as sensações conflituosas do ser, entre fascínio e horror, diante do mistério do amor, da vida, da morte e do vazio . Descrevendo o desvio de rota de uma dona-de-casa, a partir de um acontecimento que interrompe o fluxo ou a linha contínua do seu cotidiano ordenado, Clarice Lispector usa a palavra para construir a “porta de passagem” que possibilita à personagem a saída do seu mundo habitual, o seu encontro com o vazio e a comunhão com a coisa “puramente viva”. Através da linguagem acontece o mergulho, a viagem de ida e de volta – podendo acontecer também, após a experiência de risco da leitura do texto, que coloca em discussão certos aspectos da rotina repetitiva do cotidiano moderno, uma transformação na vida da personagem, o que afeta a leitura como se fosse o próprio percurso do leitor no mundo massificado.
O título do conto, “Amor”, desperta interrogações quanto ao sentido desta palavra dentro do texto, funcionando como seta que aponta para certa direção . Faz acreditar, desde o início da leitura, que o sentimento de amor terá importância dentro desta narrativa, a qual descreve uma passagem na vida de Ana, uma mulher aparentemente satisfeita com sua rotina doméstica, tranqüila e ordenada. No entanto, logo de saída, também deparamos com o seu cansaço, na cena inicial do conto, quando ela sobe no bonde, carregando compras no seu novo saco de tricô: “Um pouco cansada”, senta procurando conforto. Enquanto o bonde viaja, nós começamos a conhecer o seu dia-a-dia: Ana tinha filhos bons, uma cozinha grande com um fogão que dava estouros, um marido que chegava em casa carregando jornais e sorrindo de fome... Descobrimos ainda que ela tentava tornar seus dias “realizados e belos”, suplantando a “íntima desordem” e emprestando a cada coisa uma “aparência harmoniosa”. Ou seja, era uma pessoa que acreditava ser feliz (ou, ao menos, que tinha sido condicionada a crer que aquilo era a “felicidade”), que lançara suas sementes e via-as crescendo, que caíra “num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado”.
Porém, se a vida cotidiana de Ana parecia satisfatória e tranqüila, também possuía uma face oculta, perturbadora e díspar: havia a “hora perigosa da tarde”, quando as coisas não precisavam mais de sua força, e ela “inquietava-se”. Qual seria o perigo? Ao que parece, este tinha a ver com o ócio daquele momento, em que Ana já havia cumprido com seus deveres, e a casa (limpa) ficava vazia e silenciosa. É quando o silêncio, o ócio e o vazio fazem-na pensar na própria vida, no próprio percurso, nas próprias escolhas, que começa o seu mergulho... Ela lembra de uma “exaltação perturbada” da juventude, que tantas vezes confundira com “felicidade insuportável” e que trocara por uma “vida de adulto”, ao descobrir que “também sem felicidade se vivia”. Percebemos, aos poucos, que a protagonista de “Amor” construiu uma casca: um escudo protetor para precaver-se contra a sensação insuportável de viver num mundo imprevisível, de verdades terríveis ou perturbadoras que ela prefere esquecer. Por isto, tenta suplantar a íntima desordem, disciplinando a própria rotina, evitando a solidão da casa vazia na hora perigosa da tarde, e saindo para fazer compras: foge de si mesma, da própria inquietação?...

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto ela o abafava com a mesma habilidade que as lides de casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

Apesar de se sentir viva no seu mundo “sumarento” e confortável, Ana procura planejar seus passos, proteger-se, pois teme algo desconhecido: algo latente dentro de si mesma, algo assustador, temível e ameaçador no mundo de raízes negras e suaves do qual sabe fazer parte... Ela parece ter certa consciência da própria atitude, e saber, no fundo, que está se resguardando, evitando alguma verdade – prefere, porém, manter-se presa na sua vida de hábitos mornos e repetitivos, na ilusão de sua rotina tranqüila que lhe proporciona relativa segurança...Algo similar acontece com a protagonista do conto “Os Laços de Família”, Catarina, uma mulher que aprisionou e domesticou os afetos, ao ponto de só conseguir “rir pelos olhos”, contida. Esta outra personagem clariceana, como a protagonista de “Amor”, pressente o perigo da emoção que quer aflorar no seu íntimo, uma alegria ou loucura quase indomesticável: “Se eu rio, eles pensam que sou louca”. Catarina também enfrenta um acontecimento que coloca em risco a paz aparente de sua rotina diária, e a faz despertar para outra realidade, muitas vezes reprimida. Ambas passam por experiências que as arrancam da monotonia do seu cotidiano domesticado, forçando-as a um confronto com certas verdades quase esquecidas ou evitadas.

Nestes dois contos de Laços de Família percebemos certas tendências experimentadas por Clarice Lispector ao longo de sua obra: de um lado, o tema da relação entre os seres, e de outro, uma estrutura narrativa em que o processo de auto-conhecimento se desenvolve gradativamente, por etapas bem definidas. Interessa-nos observar como este encontro do ser com o outro, com sua humanidade, e, além disso, com sua animalidade orgânica (a própria essência vital), após a saída do dia-a-dia domesticado, produz uma fissura no ser endurecido pela rotina da vida automatizada Em outras palavras, tentamos encontrar em “Amor” vestígios da proposta clariceana que está por trás destes encontros com o outro (que acontecem em vários de seus textos): um confronto que faz refletir sobre a automatização humana e abre o pensamento padronizado contemporâneo para outras visões, alternativas e possibilidades...


2. Encontros e rupturas

Em “Amor”, viajamos com Ana no bonde que vacila nos trilhos, na hora perigosa da tarde. “O bonde vacilava nos trilhos” •: imagem sugestiva, que alude à instabilidade da ordem forjada na vida desta mulher que teme o imprevisto, o feio, o vazio. O bonde que vacila nos trilhos faz pensar na possibilidade de uma catástrofe , de um imprevisível acidente de percurso que retire a personagem de sua rota óbvia e infalível. Esta frase soa como um agouro , um presságio de que algo está para acontecer, justamente nos últimos instantes da “hora perigosa e instável” da tarde. É neste momento que Ana vê o homem cego parado no ponto, e este encontro inusitado, que é também acaso e fortuna , provoca o acontecimento na vida tranqüila da mulher: ela tem um sobressalto, seu coração bate acelerado e violento.
“Alguma coisa intranqüila estava sucedendo”.

Aqui, a expressão coisa intranqüila ganha uma força, é pura potência da linguagem, a palavra exercendo seu poder de abertura de frestas, brechas, clareiras. Alguma coisa intranqüila sucede na vida calma e previsível de Ana, ao ver o cego que masca chiclete (e que parece rir dela?... Como as coisas pareciam rir na casa limpa, silenciosa e vazia?...). O cego não a vê, como as coisas, as árvores, os móveis ... Mas ela o vê e olha-o “profundamente, como se olha o que não nos vê” Olhando-o profundamente, parece descobrir algum segredo sob a superfície do banal, um mistério... A imagem provocativa do cego mascando goma “na escuridão” coloca-a em contato com o lado obscuro e grotesco da vida, por ela evitado, e este encontro-confronto-choque racha sua crosta. É o momento da catástrofe, quando o bonde dá uma “arrancada súbita” e joga Ana para trás, fazendo com que ela deixe cair no chão seu saco de tricô, o embrulho com os ovos... Algo acontece, a casca se quebra, o fio se parte... A linearidade da vida automática de Ana é interrompida. Neste ponto, tomemos emprestadas estas palavras de Raúl Antelo: “Mesmo quando o acontecimento é um entrave ou um obstáculo poderá, no entanto, conceder a felicidade de ultrapassar o óbvio e encontrar uma saída.”
Note-se que no conto “Os Laços de Família” a personagem Catarina também está em trânsito, usando um meio de transporte (um táxi) no momento do choque que provoca sua mudança de atitude: uma freada súbita do carro causa o acidente, o encontro imprevisto entre mãe e filha:

“... uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. Ah! ah!, exclamou a mãe como a um desastre irremediável...”
Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? Seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida...

Tanto em “Amor” quanto em “Os Laços de Família” o choque acontece a partir de situações corriqueiras do cotidiano: o bonde que arranca subitamente, o táxi que dá uma freada... No entanto, a micro-catástrofe que sucede a estas personagens tem particular importância: é o momento da mudança de rumo, do desvio, em que elas encontram justamente aquilo do qual estavam tentando escapar, a verdade escondida... Ana vê o cego, Catarina encontra o corpo da velha mãe... E mais o quê?... A arrancada (súbita) do bonde e a freada (súbita) do táxi despertam-nas para a fatalidade da vida que pulsa dentro de si e no mundo ao redor (assustador e palpitante), rompendo sua crosta, expondo-as ao perigo. Desastre, desvio, despertar...
Nas duas narrativas, as mulheres deixam cair algo no chão no momento do impacto: em “Amor”, Ana deixa cair o embrulho com os ovos, e em “Os Laços de Família”, caem as malas da mãe... (e ainda o chapéu da velha, quando parte o trem, depois da despedida de mãe e filha na estação ). A queda destes objetos (ovos, malas, chapéu) que lembram invólucros (os quais precisam ser partidos para que a matéria viva vaze) é significativa: podemos pensar na própria casca das personagens, rachada no momento do impacto, do susto, do desvio. Nestes extravios, há perda e ganho: perde-se parte da (aparente) segurança, se ganha outra e nova visão das coisas (e da vida)... Extravio: extra-via, desvio, via que ultrapassa o óbvio... Ana redescobre a piedade a partir do encontro com o cego, enquanto Catarina reencontra a intimidade perdida com a velha mãe. Depois do susto, a partir deste instante de comunhão com o outro, surge nas personagens a estranha sensação de esquecimento:
O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos?

Não esqueci de nada? perguntou a mãe...............Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas.

A sensação de esquecimento ou vertigem do vazio redesperta as personagens para o mal-estar da vida que parece vazar através da casca fendida, depois que a ordem infalível do cotidiano automatizado é interrompida: “Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam.” No instante do desastre, do desvio e do esquecimento (abandono, desordem íntima, loucura) a casca se quebra e a gema escorre pela fenda do eu cindido. Isto evoca idéias de Julia Kristeva sobre a “dissociação das formas”: “a forma se de-forma, se abstrai, se desfigura, vaza: últimos limiares do deslocamento e do gozo indescritível”.

Em “Amor” as imagens do cego e dos ovos quebrados são decisivas, provocativas e prenhes de sentido: o homem cego é também o objeto que causa o desvio de curso na vida ordenada da mulher – e pode ser visto como uma porta, passagem, brecha, meio e mediador , já que permite o atravessamento para um outro mundo, o encontro de uma outra realidade (como a barata-porta em Paixão Segundo GH ). A imagem ambivalente do cego (mediador e marginal) tateando com as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontece ao redor, deixa suas marcas em Ana e ao longo do texto, provocando o mal-estar (entre dor e prazer) diante da ruptura da rede de sentido: “o mal já estava feito”, e “estar num bonde era um fio partido” . Sufocada pela piedade e atemorizada diante do mundo, já então “mais hostil e perecível”, Ana percebe de súbito que as “pessoas periclitantes” podem ser felizes, apesar da falta de lei ou de sentido. Quando a “crise” começa, depois do desastre, ela pressente também o prazer possível: “... o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada”. “Mais tarde, em Paixão Segundo GH, Clarice Lispector escreve:”: “Como cegos que tateiam, nós pressentimos”... “o núcleo da vida...”... “... e o intenso prazer de viver”.

O próprio cego mascando chiclete – objeto vivo e abjeto - que provoca o estranhamento e o acontecimento (o acidente de percurso, o desvio de rota e a ruptura: por causa dele os ovos se quebram e as gemas escorrem entre os fios da rede) pode, portanto, ser visto também como um ovo, a coisa que provoca a transformação, revelando verdades (esquecidas) e um mundo (n) ovo, mais vivo e palpitante, embora menos tranqüilo. Ovo grotesco e informe, o cego aponta para o não-lugar da falta, do vazio, do esquecimento . Mascando chiclete no escuro, sem sofrimento, o cego-ovo pode ser também a chave que abre a porta para o espaço neutro do silêncio e do sem-sentido , a brecha que prolifera o diferencial e que lança ao abismo das incertezas, ao espaço vazio da “ausência de certezas” evocado através da linguagem ficcional, que “provém do silêncio e ao silêncio retorna.
O cego-ovo de “Amor” é um exemplar de objeto vivo ficcional, o qual desova mais significante a cada nova tentativa de limitar sentidos. É, além disso, uma espécie de espelho: a visada dos seus olhos (ovos) cegos devolve para Ana uma nova visão de si e abre uma fenda, um interstício, uma passagem para a diferença, mergulhando o mundo em “escura sofreguidão” (imagem que evoca a zona neutra e vazia de certezas).“Algo que estava no fundo informe vaza, subindo à superfície, as formas se decompõe e repartem o eu passivo, em torno deste ponto de a-fundamento ”. Podemos ligar este “vazamento” à irrupção da “desordem íntima” reprimida pela personagem – que vaza também na imagem dos ovos quebrados. Em “Os Laços de Família”, a velha mãe é a mediadora, o espelho que permite à protagonista a mirada de si e do outro. Através da mãe, Catarina vê algo invisível, assustador e ao mesmo tempo fascinante, a Coisa indescritível.

Os seres marginais (como o cego, a velha e os animais ) surgem nos textos para provocar o estranhamento e conduzir a personagem semi-robotizada ao mergulho no mundo nauseante do amor, da compaixão e da comunhão com o outro. São imagens que circulam dentro dos textos como objetos vivos, abrindo passagens e revelando a possibilidade sempre presente de uma explosão de sentido, justamente a partir de um momento vazio (a hora perigosa entre o nada-a-fazer e o tudo-a-fazer), quando a ordem do cotidiano banal é interrompida, a casca se quebra e a gema (geléia ou lama viva, desordem íntima, loucura) escorre. Percebemos, portanto, já nestes contos, a abordagem de uma temática que será aprofundada por Clarice Lispector ao longo dos anos seguintes, especialmente em textos como Água Viva, onde é retomada com força a questão da automatização e da coisificação do sujeito, bem como a da potência da linguagem.



3. Explosões

O cego que nos conduz ao ovo, ou vice-versa (ovo que remete à gema, a qual lembra a viscosidade da goma mascada pelo cego, que nos conduz à ostra, e assim por diante) nos faz pensar no próprio objeto vivo que é o ovo-texto de Clarice, desovando novas visões sobre si mesmo e fazendo explodir pura matéria mole e viva. Como a goma ou a gema, a desordem íntima vaza, viscosa, através das fissuras abertas pela palavra, escapa e escorre pelas fendas do texto entre o pleno e o vazio de sentido da linguagem, lembrando as observações de Kristeva sobre a dissociação e o vazamento das formas que acontece na criação literária, produtora de símbolos. Clarice Lispector afirma que “O ovo é a coisa mais nua que existe” . Óbvio ou obtuso, o ovo é o objeto visado e fugidio que reaparece em muitos dos seus textos, como no conto “A Galinha” ou em “O ovo e a galinha” , entre outros. Em Água Viva, lemos que “O instante é o vasto ovo de vísceras mornas”.

Segundo Sandra Hahn, o “ovo-texto pode ser fraturado, pois que é deste modo indireto que se pode entender ao ovo”. Assim é que Ana, protagonista de “Amor”, também precisa quebrar a casca da auto-proteção ou explodir sua crosta para se desnudar e transformar-se em outro-eu mais humilde, menos seguro, porém mais úmido e vibrante. O ovo quebrado que deixa vazar seu conteúdo vivo, viscoso e abjeto é ao mesmo tempo imagem mole e dura (como o cego) que avisa sobre a violência da vida, sobre a vertigem do vazio ou sobre a doce náusea do amor e da piedade. Depois do encontro com o cego que faz rachar o invólucro, Ana cai “numa bondade extremamente dolorosa” e sente que algo explodiu dentro de si: “Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse.”...... “E um cego mascando goma despedaçava tudo isso.”... “... através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.”

O despedaçamento da ordem da vida apaziguada, quando a casca é cindida, deixa o indivíduo novamente exposto , em contato com uma parte de si e do outro que tentava esconder e evitar, o que é metaforizado pela imagem dos ovos quebrados (casulos partidos). A partir desta explosão imprevista, ressurge o sentimento, a emoção, a doce náusea do amor e acontece uma redescoberta de si: o estranho é reconhecido como há muito familiar . A catástrofe que sucede com Ana, quando cai dentro do bonde que arranca (e depois “se sacode nos trilhos” ) em “Amor”, é um momento simbólico que marca a interrupção na linearidade de sua vida tranqüila: após o acidente e a queda do pacote com as compras, as gemas escorrem, “manchando o embrulho de jornal” que envolve os ovos . Este embrulho lembra outra casca, que protege e aprisiona a vida domesticada: os acontecimentos mundanos (lembrados pelo jornal) guardam o ovo e ocultam a gema viva da desordem íntima (metaforizada por meio das gemas moles e das manchas, que sugerem o informe, o impuro e o abjeto). Lembre-se aqui que o marido de Ana chegava em casa carregando jornais, para garantir sua ligação com o mundo exterior ao doméstico, situando-se no tempo e no espaço, e mantendo sua ilusão de ordem.
O jornal do embrulho com texto preto-e-branco (trivial) é manchado pelas gemas amarelas que vazam através das frestas: alegoria que lembra como o pulsar da vida interior afeta a exterior, dando-lhe mais cor e vibração, introduzindo o imputo, o informe, o díspar. A desordem íntima, vazando, coloca em risco a ordem forjada do cotidiano, fazendo reconhecer o estranho, oculto sob o banal, “o estranho que se movimenta nas banalidades” . Depois do desastre nada mais é igual, o mundo parece outro, diferente: os fatos corriqueiros revelam novas cores e sentidos. Neste, como em outros textos, a imagem neutra e prenhe do ovo (coisa entre ser vivo e objeto inerte), ao rejeitar a idéia de uma unidade original e ao abrir-se para uma profusão de sentidos possíveis, anuncia múltiplas possibilidades de articulação de verdades sobre si e sobre a própria vida. Ana Luiza Andrade observa que
O ovo traduz a esquizofrenia do corpo em sua potencial extração de corpos em gestação. Mas se o ovo genérico se reproduz em sua equivalência, ele se representa como a moeda, enquanto padrão de série, porém singular em seu devir. Ele é produção e produto, serial e singular, ficcional e verdadeiro

Afirma ainda que o fascínio exercido pela ambivalência do ovo produz séries modernas, entre as quais o ovo marginal de Leminsky, o ovomobile de Dalí, o ovo-projétil de João Cabral, o ovo cósmico de Osman Lins... Lembremos também do ovo-Urutu de Tarsila ou do ovo-número de Borges, resgatados por Raúl Antelo , e do ovo-relógio de Murilo Mendes (que nos faz pensar no pulsar orgânico), entre outros, como exemplos de desdobramentos possíveis da imagem do ovo-germen, uno e múltiplo, mundano e mágico. Arrisco sugerir que o bonde e o táxi que transportam Ana e Catarina (e o trem que leva a velha mãe) também são espécies de ovos, como o são os textos literários: as ficções são naves que nos conduzem em infinitas viagens, meios de transporte e de transmissão de sentidos e idéias.

No ovo-texto “Amor” o embrulho de papel-jornal frágil, sujo de ovos, e as gemas viscosas que pingam entre os fios da rede são imagens que alegorizam o ressurgimento da vida que estava guardada dentro da casca, no fundo de Ana, e anunciam a emergência do perigo (perdição e salvação) para seu ser semi-ressecado. Sabemos que ela reprimiu sua (incômoda) “exultação juvenil” em troca de uma vida tranqüila, segura e controlada. Porém, após o desvio na sua trajetória (que acontece primeiro no seu interior, ao avistar o cego: uma mudança de atitude e de sentimentos – e depois na rota exterior, quando esquece de descer no ponto usual), nada é igual a antes do acontecimento: Ana redescobre o prazer de existir. Neste ponto, como acontece em outros contos que fazem parte do livro Laços de Família, podemos perceber o que Paulo Rónai descreve como uma experiência peculiar de decisão: “o instante decisivo em que uma pessoa muda de atitude em relação a toda a existência”. O momento de decisão, segundo Raúl Antelo, é “um instante de peculiar loucura” em que o ser se encontra num “entre-lugar de forças enfrentadas.”
Este momento decisivo é enfrentado pelas personagens clariceanas, quando vacilam na encruzilhada e experimentam a vertigem do vazio... (no desvio ou extra-vio – que simultaneamente as afasta de suas rotas óbvias e as aproxima do fundo sem-fundo de si mesmas). Momento de decisão e de ruptura, de desconcerto e de loucura que desestabilliza a ordem forjada das vidas domesticadas, trazendo à tona outra realidade, menos tranqüila e ordenada, mais áspera, abjeta e vital.

Roberto C. dos Santos, comentando a constelação de contos que fazem parte do espaço de Laços, descreve este livro como uma cartografia de estados, sensações e descobertas, e afirma que nestas narrativas “a potência das paixões externaliza-se, arrebata, explode. Forma um território selvagem, que a mão do homem é incapaz de domesticar”.
Esta explosão da potência das paixões acontece no texto “Amor”, e começa a partir do encontro de Ana com o cego, que desperta a sua piedade, seu desejo e o mal-estar diante da violência da vida redescoberta. A catástrofe acontece quando a personagem confronta-se com o grotesco, o impuro, o potencial repugnante da vida orgânica, percebido na imagem dos olhos do cego e dos ovos quebrados, lembrando do vazio e o pleno de sentido, a iminência da morte. Vendo o cego (ovo que não a via) e as gemas viscosas que escorriam, as pessoas vigorosas e periclitantes, Ana se assusta e é seduzida pela vida que lateja sob a superfície do cotidiano banal, devora e é devorada: redescobre-se como ovo. Note-se ainda que os próprios títulos dos textos – “Amor”, Os Laços de Família, Paixão Segundo GH – fazem explodir sentidos, a partir da potência ambivalente da palavra e da linguagem.



4. Ultrapassagens

No instante em que Ana sente renascer em si a náusea doce do amor e da piedade, percebe que passou do seu ponto habitual de descida (ultrapassou o óbvio) e salta assustada do bonde, segurando a rede suja de ovo . Ana envereda por uma nova via, acontece o extravio: ela perde seu rumo reto, mas ganha outra visão – sentimento que é aprofundado na cena seguinte do conto, quando descobre a vida exuberante do Jardim Botânico. O susto e o salto também simbolizam uma passagem, a mudança de um estado a outro. Ana salta do bonde para uma outra realidade, diversa da habitual, avança pelo desvio, sendo que aqui o involuntário, o imprevisto, o acaso, é, ao mesmo tempo, fortuna: ela é conduzida a caminho de uma mudança que será, enfim, positiva. A “rede suja de ovo” que segura entre as mãos remete ao seu contato com o impuro, com o abjeto, com o informe, com a matéria viva que vazou através do eu fendido e vulnerável.

Ana salta numa “rua comprida, com muros altos, amarelos” e, ao perceber onde está, atravessa os “portões do Jardim”: outras alegorias para seu ritual de passagem, de transformação (cuja primeira porta foi o cego). Senta-se no banco de um atalho: sai da alameda central, desvia-se da rota principal, arrisca um caminho diferente e alternativo. Ali descansa e parece passar por um processo de crisálida: “A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava a sua respiração. Ela adormecia dentro de si.” Neste ponto de pausa, parece que a personagem recupera a tranqüilidade, reencontra a paz e a ordem que havia sido abalada. No entanto, este momento antecede um aprofundamento do seu mergulho interior.
Sentada na penumbra, a personagem parece preparar-se para um renascimento: ouvindo os ruídos do Jardim, sentindo o cheiro das árvores, como se estivesse num “meio sonho”, rodeada por “um zunido de abelhas e aves”, ela redesperta para a vida, percebendo que “Tudo era estranho, suave demais, grande demais”. Ana descobre uma “face oculta da vida”, a partir do despertar da “paixão”, que funciona “a contrapelo do hábito que insensibiliza”. O que começou a suceder com ela antes, a partir do encontro com o cego, continua acontecendo quando entra em comunhão com o puramente vivo e redescobre o fascínio e a náusea provocados pelo confronto com a riqueza da vida orgânica e a realidade da morte presentes na natureza exuberante do Jardim. Isto reativa o seu mal-estar :

E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. ” ... “Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

Neste espaço diferente do doméstico, um mundo “faiscante e sombrio”, “tão rico que apodrecia”, onde “a decomposição era profunda e perfumada” , Ana sente a náusea ambivalente, diante da potência da vida e da morte: “uma forma extrema de repugnância do mundo” , provocada pela experiência de mergulho em outra realidade e pela comunhão da personagem com as próprias raízes . A náusea é, portanto, o sinal do encontro com o inumano, com o vazio e pleno de sentido, e liga-se, ainda, ao autodilaceramento do ser-linguagem e à tentativa humana de dizer o indizível, tocar no intocável, ultrapassar o possível. Na narrativa “Amor”, como em outros textos clariceanos que abrem clareiras e espaços, descobrindo desvios, percebemos esta tentativa de ultrapassar os limites, transformá-los em limiares e inventar o possível por meio da ficção.
O espaço mágico do Jardim, onde rumorejam as águas , reaparece em Água Viva (1973), a partir de um mergulho que acontece através da escrita:

Neste instante-já estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na água que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim de sombras que invento já e agora e que são o meio concreto de falar neste meu instante de vida.

É neste jardim inventado, em que a narradora fica dormitando “no calor estivo do Domingo”, rodeada por “zumbidos de abelhas e vespas” (e que lembra o momento de crisálida de Ana, em “Amor”), que acontece sua passagem para o “outro lado da vida”, a ultrapassagem das fronteiras. Escrevendo distraidamente, “como se estivesse entre o sono e a vigília” , é através de uma “verdade inventada”, por meio da linguagem, que esta voz redescobre suas “profundezas, raízes, tentáculos, serpentes, desejos”. A voz que fala de “raízes” e de “frutas maduras” , em Água Viva, remete-nos à cena de “Amor”, em que Ana encontra-se diante das árvores carregadas de “frutas pretas e doces como mel”, lembrando que existem pessoas com fome ... e vendo “todas as pesadas coisas” ... “com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo”.
Ana sente nojo e fascínio pelo mundo redescoberto no Inferno-Paraíso do Jardim, e a voz de Água Viva mergulha na “quase dor de uma intensa alegria” ao reconhecer que “é orgânica”. Podemos perceber na confluência destes textos, que criam mundos imaginários e palpitantes, a tendência clariceana de tentar captar o instante, o “fluir do próprio discurso”, através da linguagem, também transformada em matéria, em gema, em “substância viva”. A ficção de Clarice Lispector também flui, assim, como a água viva que corre nos seus Jardins inventados, evocando o indizível e despertando sensações de mal ou bem-estar, quando a própria náusea é experimentada como “pulsação, puro devir”. Além disso, fica clara a intenção da autora de tocar no intocável dos seres automatizados modernos, de abrir uma brecha no seu cotidiano banal, rachar a sua crosta e fazer vazar o informe, o reprimido e o abjeto através do mundo mágico das palavras.

5. Entradas e saídas

“Era quase noite”, e tudo parecia “cheio e pesado”, quando Ana lembra das crianças e sente-se culpada. Outro susto, antes de voltar para casa, para o mundo doméstico e ordenado. Ela quase corre, avança pelo atalho obscuro, sacode os portões fechados até o vigia aparecer. A saída do Jardim é outra passagem – dolorosa e prazerosa pela redescoberta que fizera: “... o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu.” A partir daí acontece uma sucessão de atravessamentos: ela chega à porta do edifício, parecendo “à beira de um desastre” , corre até o elevador, abre a porta da casa... Como se estivesse passando por um labirinto, procurando uma saída – ou entrada – para seu mundo conhecido e habitual, familiar, que, ironicamente, lhe parece estranho após a experiência que vivera na “hora perigosa da tarde”. Este é o momento em que a personagem volta ao seu mundo trivial, porém já transformada pela experiência de uma saída dos trilhos, da linearidade, da ordem habitual das coisas – e, portanto, apta para questionar a própria rotina repetitiva que a maquiniza:
Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava – que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver.

Após este instante de estranhamento, Ana vê seu filho, e aperta-o tentando protegê-lo, pois descobrira que “a vida era periclitante”. Ela está consciente de que ama o mundo – ama-o com nojo – de modo similar ao que sente Catarina, na sua volta para casa:

No meio da fumaça, Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. ...E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza.

Através dos olhos vesgos de Catarina vaza o seu amor pelo mundo, o seu “prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe”. Neste percurso de volta, também acontecem várias passagens e atravessamentos: ela desvia-se dos carros, burla a fila do ônibus, sobe pelo elevador, abre a porta do apartamento enquanto se liberta do chapéu com a outra mão , parecendo “disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito.” Como Ana, Catarina volta para casa modificada, afetada pela redescoberta do mundo sujo e periclitante, mais viva após o acontecimento que rachou sua crosta e redespertou-a para a emoção de existir.
Ao chegar em casa na tarde de sábado (outra hora perigosa, em que o ócio torna possível uma saída da rotina habitual) Catarina encontra o marido, que mal levanta os olhos do livro (outros olhos que não vêem ?...), e vai até o quarto do filho (mais uma porta) . O menino distraído, de olhar indiferente, como o cego, também parece funcionar como mediador, permitindo a passagem para um outro mundo, a descoberta de algum segredo ou mistério escondido. O encontro de Catarina com o filho, como o de Ana com o cego, reativa e aprofunda seus afetos. Após ouvir o filho dizendo: mamãe! pergunta-se a quem poderia contar o que sucedera, sabendo que seria difícil fazer alguém entender o que ela não sabia explicar. Catarina pensa em recriar o fato: “Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus?. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia...” (Na verdade inventada de Água Viva, texto em que se percebe com clareza a potência criadora da linguagem, a voz diz: “O que te falo nunca é o que eu te falo, e sim outra coisa. ) Depois, no momento em que Catarina ri de sua “mentira necessária” - quando ri para o menino, “não só com os olhos”, mas de corpo inteiro - a crosta se rompe e emerge o mistério dos laços: “ o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino, examinando-a.”
No conto “Amor”, quando Ana volta para casa e abraça o filho com força, ele se assusta com a expressão e as palavras estranhas da mãe, e ela recebe então da criança “o pior olhar que jamais recebera”, sentindo o sangue subir-lhe ao rosto. As reações dos filhos em relação à atitude das mães, nestes dois textos, nos fazem perceber que neste momento peculiar de aproximação algo de estranho vaza através dos olhos (ovos) das mulheres, já transformadas pelas vivências anteriores (Ana, pelo encontro com o cego e com a natureza no Jardim, e Catarina pelo encontro inesperado com a velha mãe e com o filho inocente). Vaza pelos seus olhos e pelo invólucro partido algo que assusta, uma aspereza que é também viscosidade, desordem íntima, loucura. Se em “Amor” o menino se assusta e a mãe ruboriza, em “Os Laços de Família” o filho desperta para uma relação mais feliz com Catarina (que também cora), compartilhando do mistério de sua alegria recém-descoberta – depois do que acontece a saída de ambos para um passeio na praia, sob os protestos do pai, que se sente inseguro diante da atitude inusitada da mulher. Ana volta ao lar e reencontra sua amada família, Catarina volta para casa e torna a sair do apartamento, levando o filho para passear... Nestes, como em outros contos clariceanos, ou romances, ou crônicas, ou apenas ficções, acontece a saída para o extraordinário, a abertura de frestas, o encontro de um novo espaço, a transgressão, a ultrapassagem dos limites do cotidiano domesticado do ser humano moderno.


6. A matéria viva vaza

A coletânea de contos de Laços de Família apareceu numa situação de grande desenvolvimento industrial, com sua temática girando em torno da “prisão” doméstica dos ritos familiares e do convencionalismo social . As narrativas apresentavam “o horizonte inquieto da mulher citadina, que já não mais se conformava com o tradicional limiar da copa e cozinha.” É neste contexto que podemos entender as protagonistas de “Amor” e “Os Laços de Família”, Ana e Catarina: elas são personagens típicas de uma época em que as famílias viviam com conforto e relativa segurança nos seu lares equipados com apetrechos modernos, nos seus prédios de apartamentos, subindo e descendo nos elevadores que as transportavam para o interior e para o exterior de seus mundos quadrados, assépticos e ordenados. No entanto, percebe-se sutilmente a insatisfação íntima destas personagens, no seu olhar cansado ou contido, e descobre-se uma ânsia escondida sob o seu temor do imprevisível: apesar de aparentemente felizes com sua vida doméstica confortável, Ana e Catarina desejam redescobrir sua alegria, sua desordem íntima, a beleza e a feiúra do mundo sujo, viscoso e periclitante. É assim que, depois do desvio de curso provocado pelo encontro com o cego-abjeto, Ana volta ao lar com outra visão das coisas, lembrando-se de como “sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a.” A imagem da ostra remete ao ovo, à gema e à goma viscosa mascada pelo cego, bem como à sua saliva ou aos grotescos globos oculares do cego: faz pensar na matéria mole e viva, na verdade escondida que existe sob a crosta do cotidiano banal:

“Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra”............. “seu coração se enchera com a pior vontade de viver” ... “a piedade sondara no seu coração as águas mais profundas”

A ostra, o ovo e a saliva ressurgem em Água Viva:

“... quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva.”
“A transcendência dentro de mim é o it vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Será que a ostra quando arrancada de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu costumava pingar limão em cima da ostra viva e via com horror e fascínio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo é Deus.”
“It é mole e é ostra e é placenta”.
“O instante é o vasto ovo de vísceras mornas.”
“O âmago é it mole e vivo, perecível, periclitante.”

Estas imagens provocativas ligam-se a outras que emergem aqui e acolá no espaço textual, tentando fazer vazar a viscosidade, a seiva ou a geléia trêmula e viva que existe sob a casca do ser endurecido pela rotina diária que o insensibiliza, seja este personagem ou leitor das ficções clariceanas.
A ostra sem olhos lembra ainda o cego, que não via, ou a própria personagem de “Amor”, que inquietava-se ao lembrar de suas raízes negras e profundas. Clarice Lispector também compara a ostra viscosa à placenta viva, ou à própria substância vital, que é Deus. Podemos estabelecer relações entre estas e outras imagens que ressurgem nos textos “Amor” e Água Viva: água, saliva, leite, lama, gema, geléia, placenta, seiva, suco das frutas maduras... Todas lembram coisas que remetem ao sangue, substância viva que circula pelos corpos orgânicos, objeto-abjeto que a linguagem tenta capturar. As próprias palavras formam uma rede de sentidos que tenta aprisionar a matéria viva que vaza, informe e palpitante, o texto que tenta tocar o intocável, dizer o indizível, encontrar o tudo e nada, a matéria-prima do ser .
Se a questão da automatização humana, da dobra entre o maquínico e o orgânico, dos riscos implícitos na robotização que objetifica o ser vivo pensante são temas já tocados em textos como “Amor” e “Os Laços de Família”, escritos na década de 50 e republicados nos anos 60, pode-se notar que estas preocupações de Clarice Lispector retornam com vigor em seus textos mais tardios, como o já citado Água Viva, e outros dos anos 70 ( por ex., A Hora da Estrela e Um Sopro de Vida (pulsações). Ana e Catarina são personagens que sugerem pessoas já tolhidas, em parte, pela rotina de gestos repetitivos de suas vidas ordenadas, e parecem funcionar, assim como seus maridos que trabalham fora, como peças de uma engrenagem – porém, ainda mais vivas e menos ressecadas do que as pessoas automáticas que aparecem em Água Viva (1973), imitando gestos padronizados e vazios de sentido, no fragmento em que a narradora relata um sonho:

Então sonhei uma coisa que vou tentar reproduzir. Trata-se de um filme a que eu assistia. Tinha um homem que imitava artista de cinema. E tudo o que esse homem fazia era por sua vez imitado por outros e outros. Qualquer gesto. E havia a propaganda de uma bebida chamada Zerbino. O homem pegava a garrafa de Zerbino e levava-a à boca. Então todos pegavam uma garrafa de Zerbino e levavam-na à boca. No meio o homem que imitava artista de cinema dizia: “este é um filme de propaganda de Zerbino e Zerbino na verdade não presta”. Mas não era o final. O homem retomava a bebida e bebia. E assim faziam todos: era fatal. Zerbino era uma instituição mais forte que o homem. As mulheres a esta altura pareciam aeromoças. As aeromoças são desidratadas – é preciso acrescentar-lhes ao pó bastante água para se tornarem leite . É um filme de pessoas automáticas que sabem aguda e gravemente que são automáticas e que não há escapatória. O Deus não é automático: para Ele cada instante é. Ele é it.

Nesta passagem do texto Água Viva, a automatização ou robotização humana, e a conseqüente perda de sentido dos gestos, pela sua repetição mecânica, aparece estreitamente ligada à questão da publicidade e do consumismo, da criação de imagens enganosas que oferecem alegrias e prazeres falsos àqueles seres que apenas imitam modelos, sem questioná-los. A imagem das aeromoças desidratadas e das pessoas automáticas expressa uma uniformidade estética de padrões consumistas que tende a massificar os seres civilizados, iludindo-os quanto à satisfação produzida pela imitação de gestos ou modelos e também pelo consumo de produtos que na verdade não prestam – como a bebida Zerbino. Neste caso, a escritura clariceana continua funcionando como antídoto ou veneno, instrumento capaz de evitar a petrificação dos seres humanos modernos, e de redespertá-los para a própria abjeção e animalidade, mas também para a doce náusea do amor, puro devir.


7. Transgressões

Tentando ultrapassar as fronteiras do real a partir da experiência com a linguagem, a ficção clariceana abre a brecha que permite vislumbrar a possibilidade de articulação de novas verdades sobre a realidade circundante. Seja em textos como “Amor” e “Os Laços de Família”, Paixão Segundo GH, Água Viva ou A Hora da Estrela, pode-se perceber, implicitamente, certas relações e convergências entre literatura e história, e descobrir os semitons políticos que permeiam sua obra, conforme observado por Solange Ribeiro de Oliveira, por ex., ao apontar correspondências possíveis entre a época de crise na sociedade brasileira, e a publicação de Paixão Segundo GH, no mesmo ano da Revolução de 1964, que “pôs fim a intensos movimentos reivindicatórios das classes desfavorecidas no Brasil”. Já Benjamin Abdala Jr. E Samira Youssef Campedelli afirmam que

se a sociedade brasileira se esbatia politicamente na força coercitiva do Estado e seus lugares-comuns tradicionalistas, a escritora lutava também contra estes estereótipos que se materializavam em linguagem. Era contra a palavra petrificada que ela lutava. Sua atitude, embora num plano de superfície não fosse política, correspondia, na verdade, a um modelo de comportamento que ultrapassava sua individualidade e, dessa forma, ligava-se a uma práxis social mais abrangente. Caminham igualmente juntas a aventura de enunciação, que procurava sua plenitude entrevista nas palavras, e a aventura da criação literária, ela também emparedada, a se estabelecer por sobre as brechas do sistema cultural estabelecido........ ...assim, por sobre a temática existencial, por sobre a procura simétrica de uma linguagem literária criativa, poderiam ser abstraídas atitudes sociais igualmente equivalentes.

Estes autores observam ainda que a própria Clarice Lispector tinha consciência das correspondências entre a série literária e as demais séries da práxis sócio-cultural brasileira, como se pode depreender do que ela disse na conferência “Literatura e Vanguarda no Brasil”, quando situou a politização na mesma atmosfera de vanguarda que envolve o escritor criativo:

O nosso crescimento íntimo está forçando as comportas e rebentará com as formas inúteis de ser ou de escrever. Estou chamando o nosso progressivo autoconhecimento de vanguarda. Estou chamando de vanguarda pensarmos a nossa língua. “Nossa língua.” ........ “Pensar a língua brasileira significa pensar sociologicamente, psicologicamente, filosoficamente, lingüisticamente sobre nós mesmos.


Simone R. da Costa Curi, por sua vez, detecta nas auto-citações clariceanas e na sua irreverência a respeito do ‘original’ uma instrumentalização da escritura, assim como na escolha, por parte da autora, do meio de difusão dos próprios textos: estes transitam entre os espaços de uma ‘escritura menor’ (revistas, colunas de ‘mulheres’ e até uma seção de conselhos de moda e etiqueta) ou aqueles consagrados pela crítica como dignos da literatura legítima (livro, ensaio acadêmico, artigo de jornal). Acontece, deste modo, um “trânsito ilícito, contrabando de fragmentos ou idéias, entre a coluna de vanidades e o cânone literário”. Simone Curi aponta ainda a postura ‘política’ de Clarice Lispector, que pode ser percebida a partir da tomada de distância e da adoção de práticas alternativas, pela escritora, em relação aos padrões hegemônicos que regiam a literatura de sua época: ela abandona a literatura para poder escrever. “Envolvida numa micropolítica efetuada no movimento, a escrita nomadiza os meios, a literatura, a cultura, o pensamento.”
Portanto, após estas considerações (e citações), podemos dizer que as experiências de Clarice Lispector com a linguagem literária, ao abrirem espaço para a busca de autoconhecimento, ao ultrapassarem as fronteiras de gênero e quebrarem certas convenções do mercado editorial, levam também o leitor a refletir sobre a própria condição. O leitor entra no texto, no mistério, atravessa o labirinto, procurando durante o percurso uma saída, um sentido, conforme observa Renato Cordeiro Gomes. As ficções clariceanas promovem, assim, a renovação de certas atitudes estereotipadas, e reativam sentidos enrijecidos, tolhidos ou regulados pelas regras sociais , como podemos perceber a partir da leitura dos textos “Amor” e “Os Laços de Família”, ou Paixão Segundo GH e Água Viva.
Lembre-se que estes contos foram publicados pela primeira vez antes dos anos 60 , enquanto que os textos seguintes apareceram em momentos críticos da história do país, numa época de ditadura e repressão. Renato Ortiz escreve que neste período “viceja uma cultura da depressão” , o que faz pensar nas idéias de Kristeva, que vê o “afeto depressivo como defesa contra a fragmentação” e afirma que a linguagem, através da criação literária, “exerce um efeito de ativação” . Para Kristeva, a experiência imaginária é um “testemunho do combate que o homem trava contra a depressão” . Isto pode ser entendido como uma defesa contra a idéia da morte natural, como nos mostra Blanchot – e também contra a morte simbólica do país naqueles anos de ditadura e censura. Estes textos que produzem “novas linguagens”, cheias de encadeamentos estranhos, poéticos”, tentando “recuperar a Coisa” , revelam a tendência clariceana de abrir clareiras a partir do potencial de sua escritura híbrida, transgressora, desviante e desejante, ao mostrar personagens que ultrapassam as fronteiras do seu mundo doméstico, indo além dos limites do cotidiano banal. Isto acontece de modo maduro em textos mais tardios, onde acentua-se a preocupação da autora com a linguagem e com o aprofundamento, muitas vezes penoso, da consciência do mundo.


8. Aprofundamentos, vôos, vertigens

Quando a personagem Ana, em “Amor”, volta para o espaço doméstico, após o desvio de rota que a fez transitar pelo Jardim Botânico, sente ainda a náusea doce e dolorosa diante da vida redescoberta. Na cozinha de casa, preparando o jantar, arrepia-se com a “vida silenciosa, lenta, insistente” que descobre pelos cantos: o mesmo “trabalho secreto” que acontecia no Jardim. Havia o horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha, o horror da flor que se entregava lângüida às suas mãos, o horror da formiga esmagada perto da lata de lixo, o horror dos besouros inexpressivos de verão, os mosquitos rondando em torno de sua cabeça – como a haviam rodeado as abelhas com os seus zumbidos, naquela tarde extraordinária. Parece então reviver sua redescoberta, analisá-la, aprofundá-la por intermédio da memória, recriando a experiência que revelou o pior e o melhor de si – e, sentindo-se feliz ali perto de suas crianças que “cresciam admiravelmente” , ela prende o instante entre os dedos, como se fosse uma borboleta. Sente-se rejuvenescida, aceitando que “da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago”.
A presença destes insetos lembra o instante em que Ana chega ao Jardim Botânico, sentindo-se num outro mundo, como se estivesse num meio-sonho, rodeada por abelhas e aves. Ou, depois, quando os enxames de insetos leves contrastam com a vida pesada do mundo e do jardim. Estes pequenos seres alados também aparecem no jardim de Água Viva, ou rodeando a cabeça de Rodrigo, “vespas feito anjos transparentes”, em A Hora da Estrela. Qual seria o papel mágico e secreto dos insetos, especialmente os alados, nestes textos de Clarice Lispector?... É possível pensar que eles ajudam as personagens a voar, que contribuem para que aconteça uma metamorfose, um mergulho em outra realidade, ou, se preferirmos, o aprofundamento da consciência do vazio e pleno de sentido, a vertigem da vida e da morte, a redescoberta da matéria trêmula e viscosa, do mundo perecível e periclitante.
Um estouro do fogão (outro choque maquínico-moderno, como a arrancada do bonde) interrompe o mergulho interior de Ana: ela corre para a cozinha e se depara com o marido que derramou o café: a imagem do líquido escuro (impuro) que escorre também sugere um vazamento, e o micro-acidente provoca uma momentânea perturbação. O homem estranha a expressão diferente no rosto da mulher e, parecendo cansado, com olheiras, abraça-a, depois segura sua mão, levando-a consigo, “afastando-a do perigo de viver”. Aconchegada nos braços do marido, ela ainda lembra, no entanto, que naquela tarde “alguma coisa tranqüila se rebentara”, sente que foi transformada pela saída do habitual, pela redescoberta do extraordinário existente sob a crosta do banal.


9. Bichos e objetos abjetos


As imagens recortadas dos textos de Clarice, como a do cego, dos ovos, da ostra ou dos bichos compõe uma série de “coisas” e objetos abjetos e perturbadores que aparecem para provocar os desvios de percurso das personagens humanas, revelando-lhes algo do mistério escondido sob a crosta de sua rotina habitual – como acontece com Ana, em “Amor”. Estes bichos, coisas ou pessoas que ressurgem às vezes reciclados, em textos diferentes, circulam pela escritura clariceana como objetos vivos e pulsantes, prontos a detonar explosões de sentido dentro e fora do texto, formando séries deslizantes e fazendo vazar a geléia viva através da experiência de risco da linguagem. Simone Curi escreve a respeito das séries nômades de bichos e objetos que perfilam-se nos espaço textual clariceano:
Vão desde um corpo muito frágil – uma esperança que irrompe no umbral da ordem doméstica – cruzando por tantos outros. Brutos ou primitivos, corpos instauradores de um olhar em si: um búfalo, uma barata. Domésticos e silvestres, cavalos, cães, galinhas, macacos, ratos, sem diferenciação de espécies ou reinos invadem os textos, fazendo-se confundir suas naturezas com as das personagens.

Também nos objetos uma linha de contornos se define na perspectiva do olhar, dando-se a localizar séries já prefiguradas no horizonte dos títulos, como lustre, cidade, maçã, livro, estrela. Coisas coexistentes no mundo das aparências: peças, artefatos ou máquinas criadas para um fim. Utilitários com nomes próprios, objetos que designam como palavras.


Bichos e objetos deslocam-se e provocam deslocamentos, viagens interiores. Se o ovo ou a ostra, viscosos, permitem a redescoberta da “desordem íntima” escondida dentro da casca, concha ou casulo, no caso das máquinas, como o bonde, o táxi, o trem ou o elevador, pode-se dizer que o movimento exterior propiciado por estes meios de transporte também acaba conduzindo as personagens de “Amor” e “Os Laços de Família” a uma espécie de viagem, de redescoberta íntima e vital. Podemos ver as coisas e máquinas, ironicamente, como intermediárias na tomada de consciência do conteúdo reprimido, assimétrico, animal ou disforme que lateja sob a crosta do cotidiano banal e domesticado. Os acidentes imprevistos, aparentemente comuns e ordinários, que acontecem quando Ana vê o cego, o bonde arranca e ela cai, derrubando os ovos, ou quando Catarina encontra o corpo da mãe e deixa cair as malas, por causa da freada do táxi, transmutam-se no texto clariceano em acontecimentos singulares que conduzem as personagens a redescobertas importantes, despertando reflexões sobre o próprio processo de civilização e automatização humana. O bonde, o carro, o trem – máquinas que lembram o movimento veloz do mundo moderno – movem-se num ritmo mecânico e acelerado que se distingue do ritmo lento e orgânico redescoberto por Ana no Jardim Botânico, onde mergulha num quase-sonho, ouvindo o zumbido dos insetos.
Este ritmo orgânico, resgatado em muitos textos de Clarice Lispector, manifesta-se, por exemplo, pela evocação dos ruídos e movimentos dos insetos, diversos dos maquínicos, como nos textos “Amor” e Água Viva, onde o mergulho no espaço do jardim faz emergir lembranças de algo vital quase esquecido pelo ser humano moderno. De certo modo, o contato da personagem com os bichos desenterra fragmentos de memória de uma animalidade presente no humano, fragmentos que emergem nas entrelinhas como resíduos do mistério da coisa indizível e indomesticável. Em Paixão Segundo GH, a protagonista despe-se de sua máscara, deixa cair a própria casca, ao se deparar com a barata esmagada de olhos esbugalhados, podendo a redescoberta do reprimido e da animalidade abjeta também ocorrer no espaço doméstico, após o acontecimento que provoca a transformação nas protagonistas. O ritmo dos bichos, portanto, ajuda a provocar o mergulho ou a viagem interior, ao desencadear o ressurgimento de lembranças e sensações adormecidas, o que também funciona como uma arrancada.
Podemos concluir deste estudo, que a ficção fragmentária de Clarice Lispector possibilita o resgate de memórias e sentidos, por meio de suas imagens ambivalentes que potencializam o falso, desconstruindo, recompondo ou rearticulando verdades. A partir dos passeios pelos jardins da escritura clariceana, somos convidados a participar desta viagem periclitante e redescobrir que, se “o cotidiano tem a tragédia do tédio da repetição”, existe uma “escapatória”, pois “a grande realidade é fora de série, como um sonho nas entranhas do dia”.




Autora: Ana Luisa Kaminski



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Academia de Artes e Poéticas "Clarice Lispector"

Planeta, maio de 2008 -Academia de Artes e Poéticas "Clarice Lispector" - "Um espaço não vazio"....

A Academia de Artes e Poéticas "Clarice Lispector", é especial homenagem à escritora Clarice Lispector, nascida em 1920 e falecida em 1977. A literatura brasileira começou a viver uma revolução chamada Clarice Lispector, em sua época. Uma revolução que começou com o seu romance "Perto do Coração Selvagem", e que até hoje respira a alma de Clarice, que por sua vez inspira milhares de pessoas.

Estamos a exatos 12 anos do centenário de nascimento de Clarice e sua poética literária, que continua considerada como única em seu tempo (começo do século XX, quando com apenas 20 anos já manifestava suas posições e militância intelectual a favor da liberdade, dos direitos humanos, e contra a sociedade machista da época.

A obra literária de Clarice Lispector continua inspirando os estudos e teses sobre a alma humana, pois ela escrevia o que sentia, numa literatura existencial, numa prosa poética e urbana cheia de sentimentos intensos.

Clarice nasceu em plena fuga, na Ucrânia. Seus pais eram judeus e fugiam da perseguição religiosa da Rússia. Ela chegou com seus pais ao Brasil aos dois anos. Naturalizou-se brasileira e, com sua inquietude e angústia, transformou a literatura nacional para sempre.

Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector

Academia de Artes e Poéticas Clarice Lispector
Este espaço é a Primeira Academia Virtual em homenagem à pensadora, escritora e poeta que muito contribuiu com a história da literatura brasileira. Este espaço foi iniciado em maio de 2008, para homenagear a memória da escritora Clarice Lispector, bem como de outros autores e metres da literatura brasileira e internacional.

Este espaço cultural, poético e literário foi aberto em maio de 2008, como proposta apresentada no Fórum Internacional de Mulheres do Futuro pela Paz do Planeta.

Brasil, maio de 2008
Grupos ArtForum Brasil XXI
Projeto Universidade Planetária do Futuro
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Fórum Internacional de Mulheres do Futuro pela Paz.

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"Vamos Salvar A terra"
Vídeo by Ana Garjan & Luuh Designer

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